A edição de 15 de janeiro da Maré Cheia, as páginas de Artes e Letras do jornal Portuguese Tribune, Califórnia (USA), coordenado pelo professor e escritor Diniz Borges, apresenta um jovem poeta terceirense: João Félix. Uma poesia linda, esbanjando sentimentos e um gosto imenso pelas palavras, cinzelando-as com uma precoce maturidade. Uma escrita criativa, lapidada com arte a comungar a vida em movimento, fiel a si e as rotas do seu tempo. Forte como o rugir do mar e o esbravejar das entranhas telúricas. Surpreende-me a sua poesia e os seus 18 anos.
Diniz Borges, não esconde a emoção ao completar a sua apresentação em "Apenas Duas Palavras": "João Félix é neto do falecido poeta (e um grande amigo meu, de quem tenho muita saudade) Emanuel Félix". Neto? Imobilizo o olhar. Volto ao João e a intimidade confessional de sua bela arte poética "Amo-te pelo teu brilho langoroso e suave,/Porque és onírica e iridescente,/Bela e silenciosa como gato de um poeta…" Eu,também, me emociono com o "neto-poeta" e com as palavras do Diniz Borges, partilhadas com simplicidade : " Durante algumas das minhas visitas à Terceira passei uns bons bocados com Emanuel,com quem aprendi muito acerca da literatura,da arte,da justiça social,da vida.Por vezes lá passava o João. Emanuel tinha uma grande paixão por este neto.Falava muito com ele e não perdia,justamente,nem um momento para falar do neto aos amigos. Hoje,o João está homem feito,e,tal como o avô,é poeta."
A Maré Cheia e o seu comovente editorial trouxe à lembrança o poema de Emanuel Félix, dedicado à memória de seu pai, Os Mortos e as Sementes" em que o avô do João Félix fala-nos da partida celebrando a vida, uma dualidade tecida entre o olhar suspenso pela dor sentida e a dimensão do mistério do renascer. "Os mortos como as sementes/são enterrados/Penetram/a dimensão só a eles acessível/atraídos pelo mistério do renascimento/e da fertilidades sem tréguas. /Como as sementes /esperam/ o seu regresso à vida/ sob uma nova forma." (In:Habitação da Chuva,1997;2003:216).
Não é preciso acrescentar mais nada. Fica o poema, o saber profundo na palavra do poeta, fica a semente em seu desabrochar.
A imagem saudosa de Emanuel Félix ("as cãs onduladas que ele cultivava davam-lhe esse ar de sage", escreveu Onésimo de Almeida, por e-mail em fevereiro de 2004) enternece o coração de quem sempre admirou a sua obra poética – a perfeição estrutural, a preciosa dimensão linguística e a expressão plástica de seus versos – Um legado fabuloso! Cultivou igualmente a crônica e o ensaio. Exímio contador de histórias. Fez com propriedade a crítica literária e de artes plásticas. No rigor da palavra poética deixa fluir a emoção com suavidade, a ironia, o humor, a magia do olhar. Sempre forte, sábia, presente, rica e plena como no "Pedra-Poema para Henry Moore" ou no belíssimo"Five o`clock tear",o desenho infinitamente triste da mulher,uma interface com o poema "Five o`clock tea" de Vitorino Nemésio ou ainda a intimidade narrada com imensa graça em "As Raparigas lá de Casa". Tatuagens do imaginário ímpar do poeta marcadas pela diversidade do olhar, da forma e da liberdade de ser e sentir e da busca incessante da palavra prima. "Uma poesia que busca nas palavras entender e dar a entender o sentido da vida", afirma Fátima Freitas Morna (2003: 20).
Emanuel Félix, o mestre, ensina. Aprendemos com sua poesia que é acima de tudo fiel a si mesmo.
No dia 14 de fevereiro de 2004, sexta-feira, na cidade de Angra do Heroísmo,Terceira,Açores,dia de São Valentim, padroeiro dos namorados,o poeta partiu deixando uma saudade sem fim.
Hoje, passados cinco anos, entro no espelho da memória e mergulho no tempo retornando aqueles dias de um passado que não morreu. Abro o relicário dos registros guardados com muito afeto, são e-mails e textos revelando o impacto e a tristeza desencadeada pela notícia de sua morte que surpreendeu todos os seus amigos e admiradores.
Vento Sul forte amenizava o calor escaldante naquele fevereiro de 2004. Estava na casa da praia, na bucólica Jaguaruna, no sul catarinense. Casa aberta, janelas de par em par, redes desfraldadas por todo varandão como bandeiras do Divino a anunciar a sua chegada. Em frente a casa, o jardim florido de hortênsias, imensos novelos azuis a lembrar as Ilhas açorianas, lá do outro lado do Atlântico. Bem, em linha reta fica a África. As Ilhas ficam mais acima, no hemisfério norte, ensina a geografia. No balanço gostoso da rede olhava o mar encrespado, nas mãos os "121 Poemas Escolhidos (1954-1997", de Emanuel Félix, que eu,embevecida, deambulava por suas páginas, adentrando no labirinto das palavras,presa pelo encantamento da sua poesia. Por uma coincidência incrível,desta que a vida nos oferece, sem mais nem menos, eu estava lendo dos "121 Poemas Escolhidos", em A Palavra o Açoite(1977), "Um poema de Carl Sandburg. quando recebi do Urbano Bettencourt a notícia de seu falecimento. Não resisto à sua transcrição: "Quero-te/como as raízes secas/desejam a chuva/no verão/ como o vento deseja/as folhas/do chão/e perdoa/dizer tudo isto tão/depressa."
Nos dias seguintes, inúmeras mensagens circularam, atravessaram o Atlântico levando e trazendo mensagens de seus amigos, evocando o tão inesperado desaparecimento do poeta que todos admiravam e estimavam. Nas mensagens que enviei, pelos caminhos do mar, à malta açoriana de amigos-escritores expressando num grande abraço solidário o meu profundo pesar, citei uma estrofe do poema "Os Mortos e as Sementes".
E, eis o que escreve Urbano Bettencourt, por correio eletrônico, datado de 18 de fevereiro de 2004: "Pois é a vida está cheia destas estranhas e tristes coincidências, como a que se passou contigo. Na sexta-feira juntei alguns nºs do SAAL (sobre E.Félix) para na segunda-feira levar aos meus alunos de Literatura Açoriana: acabei por levá-los, mas em circunstâncias totalmente diversas. O "JL" de hoje traz uma pequena nota de Eugénio Lisboa, que acaba com a citação do poema "Os Mortos e as Sementes", tal como tu fazes; o "Açoriano Oriental" pediu-me no sábado 1200 caracteres sobre o poeta; acabei o texto citando o mesmo poema. É a isto que eu chamo a Irmandade Atlântica da Leitura!
Por tudo que foi dito, esta é uma homenagem ao universo de Emanuel Félix, a herança poética que se revela a partir da sua Ilha Terceira; à Irmandade Atlântica da Leitura, num tributo a íntima comunhão de pensamentos, ao diálogo liberto e sem fronteiras; à fraternidade de uma malta açoriana, muito especial, um dia reunida em torno de Emanuel Félix, como convivas de uma certa "Ceia", uma bonita montagem, fruto da criatividade do escritor Marcolino Candeias. Sobretudo, a Ceia é um sinal (mesmo no seu humor) do respeito e da consideração que os ícones da literatura e artes açorianas tinham e têm por Emanuel Félix.
De uma "rapariga" do Brasil-açoriano que não conheceu o poeta, não recebeu um carta escrita com sua elegante letra miúda;não ouviu da sua boca as histórias que tão bem sabia contar, em deliciosos serões, que seus muitos amigos não cansam de relembrar.
Fiquei pra sempre cheia de inveja e também com muita saudade pelo que nunca partilhei.
Florianópolis,4 de fevereiro de 2009
Ilha de Santa Catarina
Legenda e Crédito das Imagens:
1. www.bparah.azores.gov.pt/html/Imagens/EFelix-2003
2. Diniz Borges, Emanuel Félix e Vasco Pereira da Costa,
no Simpósio Filamentos da Herança Atlântica, em Tulare,Ca.
Acervo de Diniz Borges.