Aquando da minha breve estada em São Miguel para participar no encontro Escritas Dispersas – Convergência de Afectos, de 24 a 27 de Outubro de 2009, organizado pela Direcção Regional das Comunidades, tive o imenso prazer de assistir ao lançamento, no Auditório da Biblioteca Pública de Ponta Delgada, na presença do homenageado, do volume Eduíno de Jesus: A Ca(u)sa dos Açores em Lisboa, homenagem de amigos e admiradores. O volume foi co-organizado por Onésimo Teotónio Almeida e Leonor Simas-Almeida, sendo Onésimo o apresentador do livro na sessão de lançamento. Estas breves palavras não pretendem ser uma recensão do volume, que ainda não tive tempo de ler com o cuidado e atenção que ele merece. Pretendo tão-só registar aqui a impressão que me causou o simples folhear do livro, no vestíbulo do hotel após o homenageado mo haver devolvido com um autógrafo. Abrindo com “Uma justificação desnecessária”, de Onésimo e Leonor Almeida, o livro está dividido em três partes: Testemunhos, que contém homenagens, impressões da obra do Poeta e alguns breves estudos da mesma; Memorabília; e Diário em e-mail. É nestas últimas duas secções que desejaria concentrar-me, pois é nelas que creio surpreender aspectos da personalidade de Eduíno de Jesus que não conhecia bem: o seu exemplar sentido de humor, e a sua também exemplar resistência ao que chamarei os efeitos deletérios do correio electrónico.
Memorabilia consiste de uma série de “escritos”, como lhes chama a sua compiladora, Maria Angélica Ribeiro, os quais constituem notinhas de despedida-até-amanhã dos amigos e colegas, muitas vezes escritas em páginas de calendário, mementos, um texto poético redigido numa caligrafia miudinha mas impecável e eminentemente legível e que me faz pensar no esmero com que eu, menino de escola, cultivava a minha própria caligrafia – que depois a emigração fracturou. O importante é que destes breves textos emerge a reconhecível personalidade do Mestre – a finura que todos nós (re)conhecemos que temos tido algum trato com Eduíno de Jesus, a elegância de pensamento e expressão e (aqui, sim, surge uma faceta que eu conhecia mal): o eloquente sentido de humor. Nunca humor a expensas de outrem, nunca humor que de longe se aproxime do grosseiro, nunca humor de magoar ninguém. Aliás, caracterizá-lo-ia como um humor em grande parte derivado de jogos verbais, de brincadeiras ortográficas, da transliteração duma frase em inglês, da citação dum verso duma cantiga medieval invocado por e inserido num (des)contexto quotidiano, uma frase latina citada a (des)propósito, uma graciosa paródia de final de carta cliché. Aqui ficam, a título de exemplo, alguns dos meus espécimes favoritos: “solissita-se à diguenícima prezidente do Concelho Directivo a finesa de acinar estas pautas. Com respeitosos comprimentos. Eduíno”; “Se não fô-sse muito encómado, agardecia às Setoras do Concelho Directíssimo o obséquio de enformar há cerca de quem é agora o Delegado de Inguelês. Mui respeitosamente, Eu”; “comprimenta ifuzivamente a elôstre cetora e fás-lhe çaber o emenço praser que cente em lhe poupar alguns paços por causa deste pressiozo ducomento”; “No prosseguimento da minha assídua correspondência com a Dr.a Laura Godinho, solicito a gentileza de mandarem dactilografar etc. Tem que i u véri mâch. Eduíno”. Numa das missivas, porém, assina “e do hino”.
Cerca de metade do volume é dedicado à correspondência, por e-mail, entre Eduíno de Jesus e Onésimo Almeida, sendo incluídos no volume apenas os textos eduinianos. Trata-se tanto duma correspondência entre grandes amigos como dum minucioso diário, em que a amizade se traduz numa partilha de minudências de mesa-de-café, onde nem falta a anedota minuciosa e deliciadamente contada. Comoveu-me, em alguns trechos desta prosa epistolográfico-diarística, a resistência do Poeta à efemeridade a que o e-mail tantas vezes convida e conduz. Não assim com Eduíno de Jesus, que trata os e-mails do amigo e os dele próprio com o mesmo grau de deferência com que os trataria se eles tivessem sido batidos à velha máquina Underwood. Também é comovente a genuína humildade do Sábio que mantém, para a aprendizagem do mais corriqueiro termo, uma disponibilidade total: “Meu Caro […] E obrigado pela lexia “juke-box”. Tinhas percebido bem “jug-box”, porque foi o que eu disse e é como vem num conto do Borges Garcia. Ele deve ter transcrito de ouvido. O meu dicionário não traz nem “jug-box”, nem “juke-box”. Também não regista “juke”. Deve ser termo da linguagem familiar, não?”
Assim que o meu encontro com Eduíno de Jesus, tanto em pessoa como através deste volume que me trará horas de leitura prazenteira, foi também o prazer de (re)descoberta de facetas para mim já conhecidas e de outras mal conhecidas de uma personalidade humana de grande riqueza: uma inteligência que não tem necessidade de se exibir, uma finura de gentleman que eu sabia ser um dos marcos da sua personalidade, uma genuinidade espontânea que convida à aproximação, uma simplicidade que realça a profundidade do homem e do Artista, e um humor suave que suaviza o momento.
Obrigado, Eduíno!
Francisco Fagundes
Amherst, 29 de Outubro de 2009