Um Livro Sem Piadas
Crítica Ípsilon por:
António Rodrigues
O leitor habitual de Onésimo Teotónio de Almeida que pegue neste livro fica já avisado, dele não irá sair com vontade de rir. Aliás, se fosse à editora, colocar-lhe-ia uma cinta em volta em jeito de alerta: “Cuidado, este é um livro sério”. Habituados ao humor, aos jogos de palavras, à livre associação de pequenas histórias anedóticas com que enche as suas crónicas, mesmo quando se tinta de negro a falar dos podres de Portugal, esquecemo-nos que estamos perante um doutorado em Filosofia e professor de História Cultural e Intelectual da Universidade de Brown, uma das oito dessa elite académica americana denominada Ivy League.
Se o próprio João Maurício Brás, co-autor do livro, tropeçou na obra por acaso, depois de ser insistentemente convidado para um jantar de um grupo de investigação do qual o cansaço quase o fez desistir, não se estranha que o ensaísta Onésimo, prolífico publicador com mais de três centenas de ensaios em revistas e obras colectivas e vários livros em nome próprio, se mantenha bastamente desconhecido no seu país de origem.
Mais de dois anos depois desse primeiro encontro, lida a obra e estudada, trocadas perguntas e respostas através do Atlântico, João Maurício Brás tornou-se especialista numa “importante obra filosófica” onde descobriu “um pensamento, um método e um estilo originais” e da qual serve agora como cicerone. Utopia em Dói Menor é uma carta de apresentação da obra ensaística de Onésimo Teotónio de Almeida, pensador singular, açoriano por definição, português de espírito, americano de prática. Do encontro destes dois homens, resulta um livro que é o sublimar de uma relação mestre/discípulo em que o discípulo, mesmo não perfilhando algumas das “posições de fundo” do mestre, não esconde o fascínio – “o espanto e admiração” para usar as suas palavras – que quer partilhar com um público mais vasto; e o mestre, com modéstia, prefere sublinhar a sorte que teve ao encontrar um leitor atento e interessado da sua obra – “ele é uma dessas terminações de bilhetes de lotaria que não comprei” -, ao mesmo tempo que coloca as reticências temerosas de quem teme as simplificações.
Sendo uma introdução à sua obra, uma simples, embora longa conversa, está povoada de parêntesis do professor que teme ver os alunos a estudarem só pela sebenta – “resumo do resumo dá chumbo, dizia-se no meu tempo de estudante”. Há como que uma resistência a simplificar o que não é simplificável, a deixar em traços largos aquilo que precisa de pincel fino. Porque, habituado Onésimo (à maneira americana é assim que se apresenta, Onésimo) ao pensamento analítico, à estruturação rigorosa das ideias, teme o desfraldar de argumentos que pareçam pouco sólidos neste livro e demovam o leitor de lhes testar a solidez no original. “Só espero que os leitores verdadeiramente interessados consigam passar desta conversa um tanto pela rama para a leitura dos textos onde desenvolvi com mais tempo, espaço e mesmo com mais esmero as questões aqui afloradas”, refere a determinada altura. Fosse por ele, talvez a longa entrevista não visse a luz do dia; valeu a certeza de João Maurício Brás para manter o projecto vivo até chegar ao leitor. Porque, como diz sobre os outros Onésimo, “ler os filósofos é importante para não cairmos em desperdícios de tempo a reinventar a roda”.
E de que fala então este Utopia em Dói Menor, título feito com um jogo de palavras que não é brilhante e pode até induzir o leitor habitual das crónicas em erro, julgando entrar em terrenos conhecidos da graça e dando por si em zonas áridas da gravidade? Do perigo das utopias, de história e filosofia da ciência, de ética, da modernidade, de Portugal e dos seus mitos, da ausência de certezas no futuro, de ser pragmático e pensar o possível – porque tantas vezes o oposto se engalana no discurso e se esgana no decurso. E também se fala de vida. O pensamento de Onésimo Teotónio de Almeida está tão vivo quanto o próprio e confunde-se com a sua biografia; o que estuda, o que pensa, o que escreve é Onésimo. Assim de simples: “Começo sempre pelo princípio e pela base, seguindo a máxima empírica, de intenções pragmáticas, do meu grande professor, o maestro Edmundo de Oliveira: ”As couves nascem do chão”.”
Nota: O autor, António Rodrigues, é Jornalista.
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