Entradas de um Diário …
Maria João Ruivo
3 de novembro, 2005
Passei no Cerco e, mais uma vez, o mar estava em fúria. Continuará tão para além da minha vida!… É também por isso que me fascina. Por essa ilusão de eternidade. Pela doçura dos seus dias calmos e talvez mais ainda pelas fúrias intempestivas.
Tanto se fala do quanto o mar faz parte de ser-se ilhéu! É já um chavão, mas não é menos verdade por isso. Para quem vive numa ilha, o mar está presente no ar que se respira, nas nuances de luz que temos gravadas na retina e, mais ainda, no nosso imaginário, na memória das imensas aventuras e prazeres do corpo e da alma. Por isso não resistimos a olhar para ele, como para um amante, que nos atrai e nos provoca tantas emoções indizíveis.
25 de julho, 13
Esta tarde, vim para as bandas da praia dos Moinhos para fugir à “rotina” de Água de Alto.
Vim sozinha, porque o Zé e os miúdos tinham compromissos, todos eles ligados à atividade fotográfica, que desenvolvem com frequência.
Enquanto espero um pouco que o Sol fique menos abrasador, tomo uma água aqui no bar da praia e envolvo-me no Eça, “ouvindo” os seus Ecos de Paris, que nunca lera na íntegra.
Às tantas, solto uma gargalhada. Só o Eça para me pôr a rir sozinha. E, ainda que com a idade vamos ficando um tanto indiferentes à opinião alheia, não deixa de ser constrangedor estar numa esplanada a rir sozinha (ainda que na frente tenhamos apenas uma garrafa de água).
Os meus conterrâneos olham-me, com aquele olhar de quem está pensando “coitadinha, nã tá discreta!”. Só um casal de estrangeiros, espanhóis, creio, se ri ao ver-me rir. Talvez entendam que estar sozinho e soltar uma gargalhada, desde que se tenha um livro na mão, não é sintoma de doença mental grave. E se conhecessem o Eça, melhor me entenderiam.
Neste capítulo, ele está a comentar, daquela sua forma irresistível, o velho hábito dos duelos que, em França, “ainda se sucedem tão regularmente como as madrugadas” e afirma que, mal nasce o Sol, a primeira coisa que se vê é “um francês (…) de florete na mão (…), procurando varar com arte as vísceras essenciais de outro francês.” Mais à frente, dá mesmo o exemplo de um tal senhor Paulo, “discípulo ardente de Proudhon”. É um episódio passado no Bairro Latino. O dito senhor Paulo, uma certa noite em que se preparava para beber o seu grogue, “avista sobre a mesa um papelinho pérfido” com uma abominável sextilha que o injuriava. Daí, foi um passo para um duelo no Bosque de Vincenas.
Passa-se que a bala do injuriador “vai cravar-se na anca de um jumento” e a do injuriado “vai varar o chapéu alto de um dos padrinhos” do outro.
A história prolonga-se, indo desembocar noutro duelo em que mais uma bala do mesmo Paulo vai acertar de novo no chapéu do padrinho do “adversário”. Aí, corre então a ideia de que as balas do senhor Paulo, “por um funesto hábito adquirido”, andam ainda pelo Bosque de Bolonha à cata de um chapéu alto onde se possam alojar.
Claro que isto dito pelo Eça é “outra história”, logo, como não dar gargalhadas, mesmo estando sozinha num espaço público?
Ainda bem que os meus “irmãos” espanhóis parecem ter-me compreendido.
15 de outubro
Lowenberg)
(Numa viagem com alunos à Alemanha)
Hoje fomos a Berlim. Apanhámos o comboio no pequeno apeadeiro de Lowenberg e, enquanto esperávamos que chegasse, não me saía do pensamento que por ali passaram, provavelmente, vários comboios carregados de Judeus com destino à morte. Arrepiou-me pensar nisso. E, apesar da alegria dos jovens, que invadia todo o espaço do comboio, a curta viagem foi angustiante
Achei Berlim uma cidade fantástica, mas austera. Falta-lhe um toque de doçura. Estava um tempo cinzento e frio e isso não ajudou, mas o que pesou mesmo foi a inevitável sombra da nossa memória colectiva, que não nos deixa esquecer.
Fomos dar uma volta de reconhecimento pela cidade com um guia muito jovem que começou por levar-nos a ver os vestígios do Muro, a barreira física, construída pela República Democrática Alemã durante a Guerra Fria, que circundava toda a Berlim Ocidental, separando-a da Alemanha Oriental. Desta barreira, faziam parte cerca de 66,5 km de gradeamento metálico, 302 torres de observação, 127 redes metálicas electrificadas com alarme e 255 pistas de corrida para ferozes cães de guarda. Este muro era patrulhado por militares da Alemanha Oriental com ordens para matar os que tentassem fugir.
É impossível ficarmos indiferentes ao peso da História. E quanto mais próxima, mais nos pesa.
Depois, fomos a uma visita ao Museu do Holocausto. Aquelas paredes completamente cobertas de fotografias e outros documentos que retratam e comprovam estes anos horrendos da História da Europa são de arrepiar. Por muito que vejamos filmes, documentários, imagens, testemunhos sobre esse massacre, não conseguimos habituar-nos à ideia de que isso aconteceu, e muito menos em pleno século XX, numa Europa civilizada.
Mas houve uma secção do museu que me atormentou particularmente. Trata-se de uma sala onde estão expostas centenas de cartas e páginas de Diário descobertas nos Campos de Concentração e pequenos bilhetes escritos à pressa e atirados pelos prisioneiros através das janelas dos comboios. Muitos deles davam indicações sobre o percurso e as condições horrendas das viagens, mas outros eram autênticos hinos de esperança. Uma esperança vã de que o horror teria um fim e em breve a vida voltaria à normalidade. Hinos de esperança de gente jovem, alguns quase crianças ainda, com todo o direito a sonhar. E foram essencialmente estes testemunhos que mais me arrasaram.
Saímos dali completamente esmagados e foi muito claro o mal-estar que se fez sentir entre os jovens alemães que nos acompanhavam. Alguns chegaram mesmo a tecer fortes críticas ao Holocausto, perante os colegas das outras nacionalidades, numa tentativa de mostrarem que esse passado os envergonha e que gostavam que não tivesse acontecido.
Mas o mal-estar durou pouco, porque o que une os jovens são as coisas boas e essas foram muitas durante este dia em Berlim. A consciência histórica, como quase tudo, é fugaz, quando se tem 18 anos. E, por um lado, ainda bem.
16 de outubro
Lowenberg
Só um pequeno apontamento sobre o serão de hoje, já que é o último aqui. Amanhã, iniciamos a viagem de regresso, de novo via Paris.
Jyri Siimes, o nosso colega Finlandês, professor de Arte Dramática, convidou-nos a todos para irmos provar uma bebida típica da Finlândia, que ele trouxera. O casal de professores franceses já tinha planos; a nossa colega turca achou certamente pouco próprio três mulheres estarem ao serão sozinhas com um Finlandês recém conhecido, de modo que fomos apenas eu e a minha colega. Conversámos durante horas, especialmente sobre Portugal e a Finlândia e qual não foi o meu espanto quando ele nos disse que tinha um enorme fascínio pelo mito sebastianista, sobre o qual lera algures. Logo a conversa derivou para aí e esclareci algumas dúvidas que ele me colocou. Falámos sobre o Messianismo e assuntos relacionados.
Não consegui tomar mais de três golos da bebida que ele nos ofereceu. Parecia Vodka, embora menos áspera, mas não pude deixar de pensar que aquela era uma forma curiosa de europeísmo – duas professoras de um Liceu açoriano e um professor Finlandês, perdidos numa vila alemã a trocarem impressões sobre um mito Português, em língua Inglesa, que é a que, inevitavelmente une os europeus.
12 de fevereiro, 2011
Na aula, e a propósito de um poema de Eugénio de Andrade, surgiu uma conversa boa sobre o poder da palavra. Foi um desafio, os miúdos em busca dos significados possíveis de certas expressões – “São como um cristal,/as palavras” – são palavras novas, professora – dizia um. E o outro – Não acho. Novas porquê? “Palavras de cristal” são palavras frágeis, transparentes. Que falam de coisas claras que todos entendem. “Algumas um punhal” – E o Nelson, um aluno cheio de dificuldades, disse – palavras que magoam, professora. Isso mesmo, Nelson. – disse eu. As palavras podem ferir, tal como punhais. E o Nelson tão contente, porque raramente abre a boca nas aulas, fechado no silêncio do seu saber tão pouco e na tristeza de que nunca lhe perguntam sobre aquilo de que sabe falar – o seu sonho de ser futebolista, o melhor. E é o melhor do seu bairro, especialmente à defesa, disse-me ele há dias, quando lhe perguntei o que queria ser. Quer ir para o Continente, entrar numa equipa federada e ser como o Cristiano Ronaldo.
Coitado do Nelson! Não sei se é bom ou não. Nunca o vi jogar. E mesmo que tivesse visto não conseguiria avaliar isso. Mas sei o que ele não sabe – que o seu mundo vai muito para além daquele bairro do Livramento onde ele mora e onde é mesmo o melhor à defesa. Mas como irá ele defender-se do mundo lá de fora? Para além do Livramento, para além da ilha, desta barreira de mar?
E fiquei tão contente como ele pela resposta que me deu, porque talvez este seja o único encontro que ele vai ter com a Poesia. Porque o que o deslumbra mesmo é ver a bola entrar na baliza adversária. E porque não? Triste é não nos deslumbrarmos com nada. Eu torço pelo Nelson. Pelos sonhos dele. Pela sua capacidade de se deslumbrar.
E acho, subitamente, que as considerações do poeta sobre as palavras lhe assentam tão bem – Desamparadas, inocentes, / leves. (…)/ verdes paraísos lembram ainda./(…) Quem as escuta? Quem/as recolhe, assim,/(…) desfeitas,/nas suas conchas puras?
Que virá a ser de ti, Nelson? Quem colherá o teu sonho, verde ainda, pueril, de vires a ser como o Cristiano Ronaldo? Desejo-te mesmo que alguém te guie nesse teu desamparo inocente e te ajude a enfrentar as agruras a que está sujeito quem é sonhador.
19 de agosto, 2011
Mas nem tudo são sombras. Não aguentaríamos a vida, se assim fosse. Acabei de enviar esta brincadeira ao Onésimo, após uma conversa com ele ao telefone. Quando estamos nesta descontracção das férias, dá nisto. E depois, a verdade é que o Onésimo provoca. Não sossega, nem deixa sossegar.
Dei-lhe hipótese de escolher um título – A trouxa ou Dê-me o meu saquinho!
Aqui vai:
Estava tão pacatamente recatada em casa, telefona-me o Onésimo apoquentado, imagine-se só, por causa de um saco de roupa para lavar que tinha ficado no carro que alugara para passar uns dias em S. Miguel. Enfim, não vou dar os pormenores, que se prendem, também, com o facto de estes amigos ficarem alojados na casa de meus Pais, na Caloura, quando cá vêm. Mas o que interessa mesmo é que estava, algures em Ponta Delgada, um carro da Micauto a circular com uma trouxa de roupa suja que não convinha mesmo nada que fosse parar ao terminal do aeroporto de Boston. Disse-me, ainda, que estava a tratar da entrega da viatura, mas que me passaria em casa para deixar o bendito saco. Protestei: que não se preocupasse, que ia eu ao seu encontro à gare do aeroporto. Mas ele que não.
Cinco minutos depois, liga-me, exasperado. Encalhara no Ramalho, junto de umas máquinas gigantescas e fora dar, vá-se lá saber como, a um beco sem saída. Tudo isto em cinco minutos e em dez metros quadrados. Lá acabou por admitir que, das duas, uma: ou cumpria o seu dever de cidadão e me entregava a roupa suja ao domicílio, correndo o risco de perder o avião para Boston, ou me obrigava a sair de casa e a percorrer a longa distância de três minutos até ao aeroporto para ir buscar uma encomenda que eu não fizera. Optou pela segunda. E lá fui eu, com a Inês (a minha sobrinha neta) pendurada na anca. Entrei desvairada pela porta das departures à cata dos embarcadiços e lá os identifiquei, ao longe, através daquela avantesma – o dito saco preto de roupa que marcou esta minha tarde para sempre.
Ainda houve tempo para um último café e para uma breve especulação sobre a minha figura a deslizar no aeroporto com a Inês numa mão e uma enorme trouxa de roupa suja na outra. Nem vou comentar.
Subitamente, o Onésimo, num arroubo de consciência e de cavalheirismo, arrebatou-me a sacola para ir pô-la no meu carro. Foi assim, do nada. Atravessámos o aeroporto à velocidade de um raio – eu com rapariga na anca; o Onésimo com a trouxa às costas, qual Romeiro sem cajado… E pronto! Foi a nossa despedida. Nunca tive outra igual.
Boa viagem, meus amigos!
PS. Neste dia Internacional da Fotografia, foi pena que não nos tenham tirado pelo menos uma.
10 de Outubro, 2011
A ilha acordou hoje carrancuda, em tons de fuligem. Olho da minha varanda e vejo só este cinzento a que não nos habituamos nunca. Céu e mar confundem-se, diluindo a linha do horizonte. Por muito que não se queira, dá-nos uma grande tristeza saber que o tempo aqui é predominantemente assim. Este cinza escuro carrega-nos por dentro o peito e não sabemos bem o que fazer para recuperar alguma alegria, que faz tanta falta para ir levando os dias.
Olho para a Serra de Água de Pau. Amo esta serra. Em parte porque está sempre ali, naquela sua força imutável, mas, ao mesmo tempo, porque é diferente em cada dia. Hoje quase não a vejo, envolta que está numa manta de nevoeiro.
Ponta Delgada é alegre quando o tempo está de feição. Feita de Mar, é porto de abrigo. Para quem vem de barco, surge ao longe, como uma miragem. Na aproximação, os viajantes logo sentem que a Serra da Barrosa, divina, preside ao destino da cidade, protegendo-a, como compete a uma divindade.
Os olhos fixam-se nos airosos edifícios da marginal e as mentes de quem desembarca tentam desvendar os mistérios que vibram para além do que se vê. Porque todas as cidades têm mistérios por desvendar, mistérios que se perdem no longe do tempo. Tempo impresso na torre da Matriz e que passa, passa e não volta mais.
Mas hoje não há olhos que consigam imaginar a beleza que se esconde por detrás deste cinzento. E tenho pena se alguém vem aqui de passagem e grava na retina apenas esta tristeza que faz não querer regressar.
14 de Julho, 12
Fui até ao Pópulo ao fim da tarde. Precisava de estar sozinha. Pus a tocar os Nocturnos de Chopin, pela mão da Maria João Pires. Entristecem-me, mas acalmam-me.
Os quatro elementos juntos, na celebração do mito genesíaco. Terra, Água, Ar e Fogo de um Sol que se extingue, num suspiro.
Fiquei a olhar para o Passado das Ilhas, gravado nos fragmentos negros que surgem das escorrências deste Atlântico tão nosso! Cristas que se erguem das águas, píncaros da Atlântida perdida. Lendas de que somos feitos.
“Ó mar anterior a nós!”, disse o Poeta. Que medos encerras? Que mistérios? Que sonhos? Que destinos?
Olho para a orla do mar e vejo sobressair os contornos negros da Ilha no branco leitoso da espuma.
Surgem lentas neblinas de um mistério que apenas se deixa adivinhar… Ao longe, o rosa do sonho, no horizonte distante que se busca e não se alcança. Refúgio perfeito, porque sonhado…Suave paleta que se extingue de mansinho no crepúsculo do dia que se foi…
O Nocturno de Chopin comove-me… Também ele chora o anoitecer da Ilha.
4 de Agosto, 12
Cheguei agora da Feira Quinhentista e vim aqui dizer que a achei curiosamente anacrónica. Adorei ver os ténis All Star e os relógios topo de gama a surgir por entre as vestes de Quinhentos. Também descobri que já se usava telemóvel nessa época, o que era muito prático. Tal como eu já esperava, a Ribeira Grande abarrotava de gente, num desejo insaciável de recuar no tempo e, principalmente, de beber cerveja.
Pequenos palanquins montados, com espectáculos bem representativos da crise que atravessamos: uma cantora lírica de voz roufenha, provavelmente atacada pelo sereno da noite; um dançarino turco com vestes muito interessantes, por sinal, mas, a avaliar pela sua cara inexpressiva e distante, a dança devia ser a de um ritual fúnebre. Até a cobra que estava ao colo de uma das dançarinas parecia de plástico. Precisei de ver bem de perto para acreditar que era real. Foi o máximo!
De qualquer modo, o povo estava satisfeito, bem agradado com os comes, e principalmente com os bebes. E isso é que importa. Que o povo esteja satisfeito. E, em não havendo futebol, que seja pela pinguça.
Mas o ponto alto da noite deu-se junto à escadaria da Igreja Matriz, onde nos tínhamos todos sentado à espera de um espetáculo de malabarismo (que talvez nos enchesse as medidas). Acabei foi por ficar com a paciência cheia por causa de um indivíduo (não fica bem dizer aqui “labrego”, pois não?) que decidiu pôr-se em pé à frente de toda a assistência. Quando lhe pedimos que se sentasse para todos poderem ver, ele fez um gesto a sugerir que nos puséssemos nós de pé. Fiquei a ferver. O Zé, furibundo, a refilar, cheio de razão. Imaginei logo que o tipo deve ser daqueles que têm direito ao Rendimento Mínimo, o que lhe dá o direito máximo de se colocar à frente dos idiotas que lho pagam.
Foi um serão deveras envolvente. Valeram-nos algumas gargalhadas com os amigos, apesar de tudo. Irritados com o “nosso semelhante”, e fartos de tanto procurar algo de interesse, acabámos por vir embora mais cedo.
No carro, vinha a pensar nisto tudo e dei comigo a rir, mais precisamente, a sorrir, lembrando-me de que por vezes dizem que sou elitista. No meio de muitos defeitos, essa é uma qualidade que tenho.
30 de Setembro, 12
Vim agora do jardim. Estive a varrer as folhas das minhas buganvílias, que o vento arrasou, insensível à beleza dos seus cachos floridos que me alegravam a entrada.
Sentei-me a ouvir Schubert, um Impromptu, tocado por Horowitz. Tentei fugir ao Chopin, que me comove sempre muito, mas Schubert não mexe menos comigo. Deixo-me enlevar por esta música sublime, pensando que há tanta gente que nunca a ouviu. E sinto uma pena, uma pena profunda de quem nunca teve oportunidade de viver um momento assim como este.
Pensei, convictamente, que faço parte de uma franja privilegiada de pessoas que tem a possibilidade de poder amar Chopin e Schubert, deliciar-se com o Eça e abrir os olhos de espanto perante a grandeza de Tolstoi ou de Dostoiewsky. Isto só assim de repente, para servir de exemplo. Claro que, quem não conhece não sente a falta e morrerá sem a sentir, mas eu morro de pena de quem nasce, vive e morre sem saber que há homens que nascem, mas não morrem nunca.
9 de Novembro, 12
Hoje veio-me aquela tristeza tão grande de quem se lembra que já passaram dois anos. Dois anos da tua morte, Pai. Tenho esse dia demasiado presente! Tento sacudi-lo de mim. Por breves momentos me distraio, mas a memória vem, persistente. Uma memória que não quero, mas que vem, em turbilhão, no meio de tantas outras, essas sim, boas de se ter.
Eu tinha 15 anos. Íamos ao Norte passar as férias. Minha Mãe seguiu viagem, na ânsia do reencontro com o meu avô e eu fiquei, por alguns dias, com o meu Pai em Coimbra, sua amada.
Ele conseguiu passar para mim a paixão por esse reduto de estudantes. Quase lhe vejo as cores e lhe sinto os cheiros, as vivências, os afectos, os desejos…
Lembro-me bem do prazer e do orgulho que senti por estar sozinha com ele naquela cidade que ele adorava. Nesse tempo, não era frequente eu tê-lo só meu. Viajávamos sempre em família e o meu lugar era um pouco o do silêncio. Era reservada, como o são normalmente os adolescentes.
Mas por aqueles dias eu andava eufórica, na alegria de tê-lo só para mim. Visitámos de novo todos os lugares, que desde pequena eu conhecia, e era sempre bom ouvi-lo falar deles com aquela paixão que era tão sua.
Já não ia à Universidade há algum tempo. Fiquei deslumbrada com a Biblioteca D. João V e apreciei-a, então, com outros olhos. Cá fora, no largo, consegui imaginar meus Pais ouvindo o toque da “cabra da velha torre”, vaidosos nas suas capas de estudantes, apaixonados, como se a vida fosse parar ali, naqueles anos doces de uma juventude que se crê eterna.
Depois foi o Penedo da Saudade e a minha comoção, porque, pelo falar de meu Pai, me apercebi de como era importante aquele lugar como espaço de memórias. Ele chamou-me a atenção para os poemas dispersos ali pelos muros de pedra. Eu era novinha, quase criança ainda, mas meu Pai tinha um jeito especial de transmitir a essência das coisas. Ao longo da vida, a sensibilidade dele foi-me marcando. Sinto até que foi passando para mim, quase por osmose. Digo isto, porque eu entendia-o tão bem, que às vezes era como se eu própria sentisse a vida através do seu sentir.
Ao fim de alguns dias, talvez por não saber bem o que agradaria a uma adolescente de 15 anos, perguntou-me o que gostaria de fazer. Estávamos junto da Sé Velha e ele tinha acabado de me indicar a casa onde vivera o Zeca Afonso. Eu disse-lhe, lembro-me perfeitamente: Gostava tanto de ver o Miguel Torga e de falar com ele, Pai. Hoje sorrio ao sabor desta lembrança, porque me recordo de como ele ficou atrapalhado. Percebi porquê. Para ele era complicado ir ao encontro do Poeta, sem saber bem o que lhe dizer. Mas o meu capricho de menina foi maior do que o entendimento do embaraço que lhe causava. E eu sabia que meu Pai dificilmente me negaria uma coisa dessas.
E lá fomos. Arco de Almedina, Quebra Costas, Rua Ferreira Borges… Ele ainda fez menção de entrar nos alfarrabistas, mas eu puxei-o, porque a ânsia de ir encontrar o Poeta era mais forte do que a minha atracção pelos livros velhos.
Plantámo-nos na sala de espera do consultório e eu juro que até hoje nunca mais esqueci a emoção desse momento. Enquanto esperávamos, meu Pai confessou-me que fizera a mesma coisa, quando era ainda estudante. Tinha estado ali com um amigo, naquela mesma sala. Hoje recordei-me de como fiquei feliz por ter descoberto mais essa afinidade entre nós.
O meu nervosismo era grande. Não estava ali ninguém e eu via, através da porta de vidro martelado, o vulto do Poeta a movimentar-se de um lado para o outro. O coração batia-me agitado, na expectativa daquele encontro.
Às tantas, a porta abriu-se e ali estava ele. Não era nada como eu o imaginara. Na minha mente infantil, eu desenhara a figura de um velhinho de cabelo branco e ar doce, quase etéreo, como compete a um poeta, um ser de um mundo que não este. Mas não. Ali na nossa frente estava um homem alto, robusto, com o cabelo ainda quase todo negro, no seu ar duro de Transmontano, marcado pelo ar frio da serra e pelas forças telúricas que eu ainda não entendia na sua poesia, mas que, de forma intuitiva, já apreciava. Lembro-me das mãos, nada bonitas, nada sensíveis, como eu achava que deviam ser as mãos de um Poeta.
Olhei-o quase com receio, enquanto meu Pai explicava o que estávamos ali a fazer, pondo as culpas para cima de mim, como era justo. E ele então abriu-se num enorme sorriso que diziam não ser muito comum nele. E esse sorriso foi para mim. Um sorriso que desfez a dureza do seu rosto e foi, naquele momento de ternura, só para mim.
O encontro não foi muito mais do que isto. Nem me lembro do que falaram, ele e meu Pai, durante o pequeno percurso entre o consultório e a livraria Almedina onde ele, pelos vistos, parava todos os dias. Mas lembro-me do beijo que me deu à despedida e jurei, nesse momento, que um dia iria ter um Poeta no meu caminho.
Quando deixámos Coimbra, da janela do comboio fiquei a olhar para trás a velha cidade, dourada por esse sol de final de tarde, cheia de vivências e de memórias, e tive pena de partir – pela cidade, pelo meu Pai, por nós os dois ali e pelo sorriso do Poeta, que raramente sorria.
Foi disto que me lembrei hoje, Pai. Na minha tentativa de fazer desaparecer o dia em que a tua morte aconteceu, fui buscar este bocadinho da minha vida contigo e, por breves momentos, tive-te outra vez só para mim.
Nos olhos onde me bailavam as lágrimas, bailou de novo o sorriso do Poeta, tudo porque tu não conseguiste negar-me esse capricho de menina.
29 de Dezembro, 2013
Hoje, o temporal abateu-se sobre a Ilha. Não é que não estejamos habituados, mas nestes dias sinto sempre mais a pequenez desta terra, o esquecimento, o abandono dela à sua sorte. E de nós. Como se não fossemos território de importância para os deuses. Como se estivéssemos prisioneiros em terra de ninguém e o resto do mundo se avistasse para lá do muro.
Começou logo de manhãzinha, para não perder tempo. Um vento agreste a tentar arrasar a minha banksia, a deitar por terra as camélias acabadas de desabrochar… Uma chuva em grossas escorrências pelos muros do quintal, e caindo na minha clarabóia com um barulho atroador. E, o pior de tudo, este nevoeiro denso, que se abate sobre nós, silencioso e prepotente, que nos encharca os ossos e nos deixa a alma triste.
Olho para os lados da Serra de Água de Pau e não a vejo. Angustia-me não vê-la. Faz parte da Ilha. É ponto de referência, como uma bússola, quando nos perdemos na noite. E é como me sinto. Perdida na beleza envenenada desta Ilha, que dorme e sonha “embalada ao som do mar”, como cantava Antero.
Combato a minha angústia no recolhimento da casa, na presença segura dos meus filhos que estão aqui ao lado, a lembrar-me que o mundo, para mim, é onde eles estão. E é onde está o Amor, assim, em maiúsculas.
Refugio-me nestes Noturnos, que me levam a outros tempos e lugares. A alma sensível de Chopin aqui, ao meu alcance, a lembrar-me que, mesmo no meio desta tempestade, há uma série de coisas para amar.
Maria João Ruivo
Nota: Maria João Ruivo. Açoriana. Natural da Ilha de São Miguel. Filha do saudoso escritor Fernando Aires. É professora do Liceu Antero de Quental
Nestas "Entradas de um Diário" a autora revela uma escrita terna,bonita. Chega suave na sua narrativa cativante,terna e nos abraça. Se encosta de manso,intimista. Gosto, gosto muito. Também gosto de quando se veste de mar e se espalha em marés e leva a gente de roldão. Assim embriaguei-me no seu olhar de Eça, recorri Berlim, encontrei Onésimo sempre pronto a ajudar e a encontrei tantas vezes sempre com o olhar grande,alargado,doce.