Entre o Cá e o Lá
Ela está na “ilha de cá”, quando escreve na “ilha de lá”,
de tal forma que as ilhas se misturam num rodopio de cor
e de festa, de espírito e de vida, só próprios de quem não
vê a ilha de cá nem a ilha de lá, mas se sente dentro da
ilha ou a ilha dentro de si!
Santos Narciso in: Leituras do Atlântico, 2015.
Já perdi a conta de quantas foram às idas e vindas entre o “Cá” catarinense e o “Lá” açoriano. Um trilhar que só trouxe alegrias, conhecimentos e muitos amigos. Trinta anos depois da primeira chegada, numa tenebrosa noite de muita chuva, a 2 de Novembro de 1988, sinto-me regiamente recompensada e agradecida por tudo que tenho recebido no convívio açoriano. Gostaria de citar a todos, um a um, a começar por autoridades regionais e municipais, os meios de comunicação social, a malta de escritores – esta grande Irmandade Atlântica que comungamos, parafraseando Urbano Bettencourt. Amigos espalhados pelas nove Ilhas e nas comunidades da América. Não quero injustamente esquecer de citar alguém, por isso fica o penhor da minha gratidão e o afeto da amizade enraizado. Existe galardão maior do que ter amigos para o que der e vier?
No flanar por alamedas afetuosas faço uma breve paragem para reverenciar os 149 anos do Diário dos Açores o jornal diário mais antigo de Portugal, onde há quase uma década tenho o privilégio de publicar os meus artigos e de sentir cativa de sua linha editorial, do jornalismo de verdade, de frontalidade e muita qualidade. Há 149 anos fazendo a diferença, levando a notícia, informando, dando sua opinião, criticando e aplaudindo, sempre com respeito ao leitor e lealdade aos princípios éticos que regem a comunicação social idônea e sem amarras.
Neste constantemente estar lá e cá tenho a percepção absoluta da aventura e a coragem do chegar e partir carregando memórias construídas, as minhas e a dos antepassados, a nossa gente. E é na literatura que regresso ao ponto de partida “em busca de…” reconhecimento de minha identidade e sempre com o Atlântico pelo meio. Esta é minha escrita e foi assim que a ousei construir. O escritor micaelense Luís Osório, numa intervenção no Arquipélago dos Escritores, disse que “a escrita é um tango, uma relação de duas pertenças – a do escritor e a do leitor. Um exercício de grandeza e também de humildade. Acima de tudo a escrita é mágica”. Aí está o ponto “G” da volúpia do escrever e o prazer da escrita. Caberá “a crítica decidir se a obra corresponde o intuito, e sobretudo se o operário tem jeito para ela”, uma lição na metáfora criada por Machado de Assis em seu primeiro romance “Ressureição”, publicado em 1872.
O “Corpo de Ilhas”((2018), editado em Santa Catarina pela “Dois por Quatro ” e nos Açores pela “Letras Lavadas” é o título da coletânea de crônicas e comporta várias formas de olhar, de revelar as Ilhas na expressão sentimental das minhas raízes islenhas ou unindo-me às muitas vozes açorianas e das comunidades da diáspora numa convergência de escritas. É sem sombra de dúvida o resultado da andança identitária na busca das minhas referências pela geografia do arquipélago, ilha após ilha, ouvindo histórias e apaixonando-me por sua fascinante paisagem e por sua gente com memória, coração e cara da minha gente. Foi isso que Fernando Aires disse maravilhosamente em Memórias da Cidade Cercada , traduzindo o meu sentir: “A certidão de que, ali, pouca gente (ou nenhuma) teria a ideia do que representa, para a vida, o roçar de outras vidas no espaço que é nosso.”
Senti-me (e sinto) parte das ilhas dos Açores tanto quanto há 49 anos sou da Ilha de Santa Catarina. Como “gente de casa” abri as imensas janelas insulares para deixar passar o Vento Norte e o Vento Sul carregando o melhor do imaginário açoriano e do catarinense, em constante movimento no tempo e no espaço, numa inevitável osmose cultural no desafio de dar a conhecer a escrita criativa, a arte da palavra de cada autor em intimidade com sua condição de ilhéu de Santa Catarina, das Ilhas Açorianas e de outras Ilhas dentro de mim, com a mesma paixão descrita nos versos de Maura de Senna Pereira em “Ilha Mulher”(1949): “Meu corpo é teu imenso corpo de Ilha e minha alma invade as tuas entranhas, participando da tua febre criadora.” A distância geográfica representada na cartografia por latitudes e longitudes não foi impedimento para parir Corpo de Ilhas das minhas paixões, abraçadas pelo oceano e enlaçadas por pontes de afetos infinitos, sempre em mão dupla. Explorar tudo isso e fazer os caminhos do mar têm sido um desafio ou uma ousadia.
Assim sendo, após doze anos, volto a nomear de Pedra de Toque o espaço que assino no Diário dos Açores. Voltar a usar a marca que identifica o espaço onde transitam nossas realidades diferentes e ao mesmo tempo semelhantes na sua essência e na matriz cultural comum. Chegar aqui e botar a palavra, ser a “pedra de toque”, nem mais nem menos. Quero trazer palavras de pulso, apaixonadas, que vêm de dentro, ditas com simplicidade e frontalidade, sempre.
Por Iansã, Oyá, que Pedra de Toque, como um jaspe, revele o Cá e o Lá, na difusão dos arquivos da memória coletiva, fruto de um grande percurso dos que nos antecederam e das milhões de vozes, multiplicadas e potencializadas, que se fazem ouvir hoje e serão amanhã.
Oxalá!
Lélia Pereira Nunes
Fevereiro de 2019