Santos Narciso : Reformados com Activo
Nelia Margarida Câmara
1. Quando entrou na reforma que emoção sentiu? Já tinha definido o que seria a sua vida depois da vida activa, ou o dia-a-dia é uma surpresa?
A minha entrada para a reforma deu-se da forma mais inesperada e pior possível. Tinha 60 anos, em 2009, quando recebi uma visita que veio para ficar: uma doença rara, difícil e sem cura, o sindroma de Guillain-Barré, doença desmielinizante, que me causou paralisia total, obrigando-me a dois anos de internamentos hospitalares, cá e no Continente, em Alcoitão, para ganhar um pouco de reabilitação física. Nunca mais recuperei o equilíbrio, e apenas sentado consigo ter alguma independência de movimentos, já que as mãos ficaram deformadas e apenas com dois dedos com algum movimento.
Perante isto, tive de deixar o trabalho, precisamente aqui neste Correio dos Açores, e após três anos de baixas médicas, veio a reforma por invalidez, em 2012, que depois, quando completei 65 anos, passou automaticamente para uma reforma normal, fruto da idade e de 45 anos de carreira contributiva, contando com o tempo de serviço militar.
Por isso mesmo, e respondendo à sua pergunta, não senti emoção nenhuma, ou melhor, carrego uma grande mágoa pela forma como tive de deixar uma vida que era, e é, uma grande paixão: o jornalismo e a feitura do jornal. Nunca pensei na idade da reforma e tinha projectos que passavam por continuar o jornalismo, embora numa forma mais leve e descomprometida de horários. Depois, realmente, cada dia tornou-se uma surpresa e posso confidenciar aqui que para quem esteve tanto tempo na fronteira da vida, o resultado foi uma transformação profunda na maneira de encarar o mundo e as pequenas coisas de cada dia. O milagre da vida, bem assimilado, faz-nos ser diferentes.
2 – O que mudou na sua relação com a família e com os amigos?
Claro que, com o tempo, com alguma recuperação, comecei a ter uma vida, quase, normal, dentro da diferença. Com o grau de dependência que a minha doença me trouxe, a família, especialmente minha mulher, meu filho, e as irmãs de minha mulher, tornaram-se ainda mais perto, numa ligação que sempre existiu, mas que se reforça com as nossas fragilidades que potenciam o espírito de serviço, ajuda e compreensão. Eu costumo dizer que o sofrimento é o toque final no tempero do amor.
Quanto aos meus amigos, eles aí estão, desde os que comigo estudaram, aos que comigo trabalharam e aos que na minha terra me viram crescer sem nunca me esquecer. Tantas provas de amizade tenho recebido. Há sempre tempo para uma conversa, um encontro, um convívio e agora com as redes sociais, para quem as sabe aproveitar bem, estamos sempre presentes, mesmo nas maiores distâncias, como acontece comigo e meus irmãos, um na América e outro no Canadá e com a minha filha que criei e que hoje vive nos Estados Unidos com os meus netos emprestados.
3 – Estando ligado sempre à área da escrita, do estudo e da investigação de vários temas passou a dedicar mais tempo às tarefas desta actividade?
Durante os meus 40 anos de trabalho, tanto em empresas comerciais como o João Soares Júnior, Filipe & Filipe, com colaboração em Francisco Manuel da Costa e Paulo Jorge Martins de Jesus, a que associava ainda o jornalismo, no Correio dos Açores, com uma passagem de dois anos no jornal Açores, então diário, dirigido por Gustavo Moura, e com alguns anos de colaborador na RDP, escrevendo todos os dias a revista de imprensa, para além de crónicas para várias rádios, nunca tive tempo para grandes leituras. Lia por obrigação aquilo que era necessário para me manter actualizado e para aperfeiçoar conhecimentos. Aqui, sim, a reforma dá-me o tempo que nunca tive. Agora leio o que gosto e nisso ocupo algumas horas por dia. E como para mim a leitura de um livro nunca está completa sem escrever sobre ele, combinei com o meu Amigo Director, Américo Viveiros, criar uma página no Atlântico Expresso, chamada Leituras do Atlântico, onde vou registando as minhas opiniões sobre os livros que leio e que tenham temática insular ou sejam de escritores açorianos ou ligados aos Açores.
4 – É uma pessoa que nunca está parada. Como preenche o seu dia a dia?
Uma das obrigações essenciais é mesmo não estar parado e isto começa pela necessidade física ditada pela minha doença. Tenho de fazer uma hora ou mais de caminhada todos os dias, desde que não chova ou não faça vento. De resto, por hábito, levanto-me muito cedo. Dedico todo o tempo do mundo à minha neta e ao meu neto, quando estão aqui em casa. Gosto de seguir as tarefas domésticas de minha mulher, de sentir o cheiro da cozinha e dos arranjos no minúsculo quintal que ela sabe desdobrar em verduras e flores. Leio, escrevo, sigo as redes sociais, na internet e respondo à correspondência de muitos familiares e amigos ausentes.
Cabe-me dizer aqui que continuo sempre ligado ao Correio dos Açores. Uma das coisas que mais me tocou quando fiquei doente e sem me poder mexer, foi o facto de o Director e Administrador deste Correio dos Açores, Américo Viveiros, ter feito questão de manter o meu nome como Director-Adjunto, até agora, num gesto de confiança e amizade que nunca esqueço e de continuar a chamar meu o gabinete onde trabalhei e que lá está à minha disposição sempre que vou ao jornal. Por isso mesmo, sinto-me, mesmo reformado, parte integrante do projecto a que dediquei 40 anos da minha vida.
Para além disso, tenho a meu cargo e regência o Grupo Coral da Ribeira das Tainhas, com cerca de 30 elementos, que muito me ajuda a continuar ligado à minha terra de origem.
Por outro lado, também preciso de tempo para preparar algumas conferências, apresentações de livros e preparações de romeiros e de catequeses, para as quais sou convidado e a que nunca sou capaz de dizer que não.
Portanto, nunca há horas vazias e reconheço que às vezes, quando era novo, perguntava-me o que iria fazer para ocupar o tempo na reforma. Felizmente que, dentro de todas as minhas limitações, continuo a ter de gerir o tempo. Mas sem stress, o que é uma coisa óptima.
5 – O que pensa de a idade da reforma ter passado para os 66 anos de idade? O que é ser reformado?
Tenho ouvido tanta explicação sociológica e económica para justificar o aumento da idade da reforma, desde o aumento da esperança de vida à sustentabilidade da Segurança Social. Como cidadão, e aqui está apenas a minha opinião pessoal, penso que isto é uma medida errada, como errado foi, durante anos terem promovido uma onda de reformas antecipadas, essas sim, pesadas e penalizadoras para o sistema. A partir dos 60 ou 62 anos, devia ser opcional a aposentação. Há profissões, nas quais trabalhar com essa idade é natural e perfeitamente exequível. Mas há outras, com maior desgaste, físico ou intelectual, onde é incompreensível essa teimosia de manter as pessoas a trabalhar com tremendas baixas de rendimento.
E há uma visão economicista que pode ser perfeitamente contrariada. O dinheiro que querem evitar gastar com as reformas, acaba por ser gasto, ingloriamente, em apoios aos jovens desempregados que se desdobram em estágios para camuflar números de desemprego mas que não entram a sério no mercado do trabalho. Ou seja, Quantos mais idosos permanecerem a trabalhar, menos lugares haverá para os novos, porque, num país pequeno e numa Região com as nossas características, o tecido empresarial não cresce assim tanto e o Governo e empresas públicas não podem continuar a ser fonte milagrosa de empregos. Por isso acho má política obrigar a mais anos de trabalho quando não há trabalho para quem termina os estudos e quer fazer uma vida.
Pergunta-me o que é ser reformado. Para mim, ser reformado é, para quem tem vida e saúde, a justa recompensa por anos de trabalho para poderem viver o resto dos seus dias fazendo o que gostam e usufruindo
da coisa mais bela da vida que é viver em família. Mas para o Estado e para muitos políticos, parece-me que reformado é ser um peso para a sociedade e para o erário público.
6 – Como acha que são tratados os reformados em Portugal? Gostaria de ver algumas mudanças na legislação para que as pessoas possam continuar a trabalhar actividades em outras áreas que não a sua formação de base?
Há um longo caminho a percorrer. Um dos grandes erros, por exemplo, desta correcção do défice do país foi terem começado por penalizar os reformados, principalmente aqueles que tiveram longas carreiras contributivas, e que no fim vêem que o Estado não é de palavra. Dita novas regras a meio do jogo e defrauda expectativas e direitos adquiridos e pagos com descontos de cada mês. Veja-se o caso dos Açores. O Governo criou, mal, muito mal mesmo, subsídios compensatórios para a função pública e para as empresas públicas, mas deixou de lado os reformados, como deixou de lado outras empresas, municipais, por exemplo. Todo o dinheiro de uma reforma já foi objecto de descontos e é fruto de descontos. Mas volta a cobrar impostos, sobretaxas e não sei mais quê.
Claro que nada devia obstar a que um reformado recebesse a reforma a que tem direito e pudesse trabalhar e auferir outros rendimentos e sobre esses, sim, devia descontar o respectivo imposto de rendimento.
7 – Somos um país que está a envelhecer. Que medidas entende que deviam ser tomadas para que os menos jovens possam ter uma vida com tranquilidade?
O país está a envelhecer, mas os poderes públicos ainda não se convenceram disto. Uma das formas de dar mais qualidade de vida aos idosos, principalmente aos socio-culturalmente mais frágeis é criar meios para combater a solidão. Já há muitas formas institucionais e de IPSS para estes apoios. Curiosamente, apoiar idosos é dar emprego a muita gente nova. Retirar a manta de assistencialismo a muitos serviços é dar qualidade de vida aos idosos. Eu não gosto de meninas da assistência, nem de esmolas da Santa Casa ou de Bancos Alimentares. Prefiro serviços que prestem os apoios, mas sempre como direito das pessoas. E há tanto para fazer, desde as acessibilidades aos transportes, que possam dar mobilidade aos que não podem sair de casa.
8 – Que episódios nos pode contar do tempo que passou a ter para si e para os outros?
Estar em casa, receber pessoas, falar com calma sem estar com o pensamento no relógio, rever um livro com calma, dar uma opinião sobre uma obra que alguém está a escrever, ensinar os netos e acompanhá-los nos seus estudos, acrescentando alguns pontos às aprendizagens curriculares deles, fazer ensaios de música descontraidamente, tudo isto é um mar de diferença que todos deveriam ter tempo para sentir, porque muitas vezes, quando trabalhamos, quase que não passamos pela vida; é a vida que passa por nós!
9 – Acha que é necessário nos prepararmos para entrarmos num período de aposentação ou sente que desde que haja projectos conseguimos nos adaptar a uma nova fase?
Quando é como no meu caso, por motivo de doença, não há nada a fazer. Aprende-se a nadar é mesmo nadando. Em circunstâncias normais é bom haver uma preparação, essencialmente para não se cair no grande vazio que é chegar à reforma e ficar, de repente, sem saber o que fazer ao tempo. Para mim seria um trauma e creio que quem passa por isso pode cair mesmo em estados de depressão e solidão, perigosos e prejudiciais.
10 – Mesmo na reforma que projectos quer desenvolver?
Nunca fui de sonhar muito e, infelizmente, com as reduções e cortes no valor da reforma, o pouco que fica não dá para acordar de grandes sonhos. Mas confesso que me falta ainda concretizar um que é o de publicar um livro. Tenho tantos escritos espalhados por aí em jornais, revistas e apresentações de livros que gostava de juntar e publicar. Filho já fiz. Árvores já plantei. Falta o livro! De resto quero continuar a seguir e se possível contribuir para uns Açores melhores e mais livres, e como crente, confiar naquilo que o Senhor da Vida tem reservado para mim.
Nota: Entrevistapublicada no Correio dos Açores,edição de 8 de Março de 2015 e aqui reproduzida com a devida autorização.