Imagem do Presépio Prior Evaristo Gouveia
(com movimentos),Ribeira Grande ,São Miguel
Era uma vez o “Dia das Montras” …
A memória é uma espécie de “diário de bordo” da existência. Ao longo da vida, vamos ficando cativos da sensação de que o tempo é fiel companheiro que vem de muito longe, e que se deleita na planície do presente, sem sequer descalçar as sandálias agastadas do passado…
Quando há dias observava o irrequietismo da petizada, numa dessas gigantescas lojas populares (onde a ilusão chinesa do preço barato faz parte do milagre pré-fabricado para o natal ocidental), senti um arrepio de saudade do inocente clima da ‘noite-das-montras‘, em que a imaginação da criançada era desafiada pelos antigos gestores da alegria desprevenida da clientela rural. Aquela era a ‘noite mágica’, desenhada pelo comércio micaelense para adoçar o olhar das famílias distraídas da própria pobreza – ilusão singela dum “sol de pouca dura” para quem era forçado a enfrentar as tradicionais ‘dores de carteira vazia‘…
Para as crianças do meu tempo, o imparável acesso da pequenada até ao beiral das vitrinas, ilustrava o ritual da inocência atarefada na sua espontaneidade dita democrática. Depois, é que a realidade nos ia relembrar que afinal o “santaclôse” não era o simpático bonacheirão da igualdade distribuitiva que a nossa pueril imaginação sonhara. Mas isso já é estória antiga que, infelizmente, continua a ensombrar a crise do quotidiano…
Até finais dos anos 50 do século passado (estou a limitar a minha referência à ambiência campestre do sul micaelense, conhecido por Rosto de Cão) os nossos presépios ainda apresentavam alguns sinais da autenticidade emocional recebida da herança franciscana: simplicidade, glorificação da pobreza material, centralidade temática na cena da sagrada família – tudo isso envolvido pela meiga proximidade do burrito e da vaquinha, sem esquecer o testemunho de humildade etérea simbolizada pelos reis-magos…
Ora naquele tempo, a maioria das moradias rurais (estou apenas a referir a realidade do sudoeste micaelense) não era apetrechada de luz eléctrica nem de água canalizada; nem a privacidade familiar disponha de ferramentas sofisticadas para prevenir eventuais abusos dos profissionais de aleivosia; a espontaneidade popular não pedia licença para entrar nos lares modestos, onde a pobreza era perfumada pelos galhos de eucalipto. Ademais, era notável a alegria natalícia irradiar claridades singelas, tal como uma lanterna mágica a contrariar o sombreado endémico da pobreza…
Não é novidade recordar que a malta pequerrucha do meu tempo mal disponha de meios para adquirir superfluidades. Todavia, as ‘serrilhas‘ poupadas durante o ano davam para renovar parte da nossa colecção de bonecos oriundos de Vila Franca do Campo. Por outro lado, os aromas, as cores, o traçado ladeirento dos acessos ao presépio tinham de prever o efeito visual da ‘ditadura’ da sombra resultante dos improvisados candeeiros-de-petróleo que emprestavam realce à policromia oferecida pelas velas de cera.
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… ora devido ao divertido privilégio de ser o mais velho dos irmãos, recordo ter ficado voluntariamente cativo da preparação dos materiais e consequente feitura do presépio caseiro: colorir a serradura, seleccionar os bonecos; arranjar musgo fresco e resistente; escolher as verduras e os pedregulhos vermelhos para montar a cena da natividade; desenhar e recortar a estrela do oriente… sempre de “olho aberto” ao nosso cachorro, de nome ‘colarinho’ – para não escangalhar o nosso presépio com a súbita excitação aromática e visual do cenário…
Ah! Já me lembro: na nossa casa, não havia um claro consenso àcerca do perfil natalício da árvore de natal. A questão não era tanto a árvore em si, mas talvez a “despesona” exigida pela sua vocação essencialmente ornamentista. Além do mais, havia a saudável percepção de que o espectáculo imperial duma árvore de natal (inserida no panorama natalício de pendor franciscano) poderia marginalizar a desejada centralidade do presépio…
Sempre que o Natal acontecia, o meu presépio era ‘o melhor’ daquele pequeno-grande mundo rural. O objectivo era o de enaltecer a natividade centrada na sagrada família. O resto era trabalho para a imaginação: as ruelas com peregrinos, os ranchos folclóricos, as ovelhinhas indiferentes ao reboliço dos pastores que iam ao encontro da “boa-nova”, enfim, tudo aquilo parecia caminhar na direcção outrora adivinhada pela caravana dos famosos reis magos…
– o Menêne mija? o Menêne mija! – era o slogan tradicional mais ouvido naquele tempo. Não admira, quando chegava à hora da ‘missa-do-galo’, a maioria do pessoal já sentia os ‘calores’ oferecidos pelos licoristas da alegria. E até o nosso prior, transportando o Menino nas meigas palhinhas, fazia esforço para verbalizar junto dos fiéis: “beija, beija, beija… o menino.”
E pronto: todos aguardavam a sua vez para tocar os lábios naquele lindo bonequinho – o bem-aventurado Menino que há dois mil anos nascera em Belém… A propósito: parece que ainda oiço vozes a entoar as melodias que continuam a fazer parte do nosso património emocional – vozes enrouquecidas pela emotividade camponesa da nossa terra, mas afinadas pelo espírito perfumado do natal cristão:
“alegrem-se os céus e a terra / cantemos com alegria /
já nasceu o deus-menino / filho da virgem maria…”
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João-Luís de Medeiros
Rancho Mirage, California
Dezembro, 2011