Era uma vez… o nosso tempo, Pai
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Maria João Ruivo Sousa
Partiu do teu eterno amigo Onésimo a ideia de fazer este livro em tua homenagem, com fotografias, cartas e testemunhos do que foste. É pouco para te narrar, mas também não seria fácil fazê-lo. É uma forma de te ter presente, de levar os que te amam e te admiram a partilharem um pouco mais de ti.
Eu nem sei o que dizer. Sinto tanto e digo tão pouco! No fundo, foi o que fiz quando eras vivo. Não te disse tudo o que sentia e agora lamento tanto o que calei.
Nisso éramos tão diferentes! O que sentias escorria para fora, naquela expressão de sentimentos torrenciais que não calaste! Às vezes criticavam-te por isso – “Nem tudo se diz, caramba!” – Pois é. Mas tu dizias. Eras assim. E aqui estou eu a recordar o que eras, o que ainda és… Porque passou tão pouco tempo!
Curiosamente, é-me ainda muito difícil dizer o que representaste na minha vida. Estás demasiado presente para ver-te à distância de um passado que não volta. Além disso, não quero dizer coisas que pareçam banais. Tu detestavas os lugares-comuns.
Claro que tiveste um peso incalculável na minha vida. Sou muito do que em mim deixaste. Até nas preocupações, na tendência quase obsessiva de proteger os que amo, no amor pelos livros, enfim… Mas não falarei disso agora. Julgo que vou guardá-lo para mim ainda por muito tempo. Já que não to disse a ti…
Neste momento, deixo aqui farrapos do que sinto pela tua ausência, porque… a tua presença levarei comigo pela vida.
Novembro, 2010
Aconteceu
Pois é, pai. Aconteceu. O horror de perder-te aconteceu.
Esse temor assolava certas noites da minha infância, em que me encolhia debaixo da roupa tentando não pensar. A minha mente de criança era incapaz de conceber um mundo onde não estivesses.
Quando cresci, tornaste-te quase imortal. A tua enorme força, a tua verticalidade de árvore inabalável, a tua energia arrebatadora faziam-me achar que eras uma espécie rara, daquelas que não morrem.
Mas… De há um tempo para cá, aquele terror voltou a invadir-me as noites e já não bastava encolher-me debaixo dos lençóis para vê-lo desaparecer. A consciência da inevitabilidade acordava-me em suores gelados que me arrancavam do sono.
E aqui estou eu, finalmente a ganhar coragem para escrever aquilo que me gela por dentro e que não consigo dizer, porque a voz emudeceu.
Gostavas do que eu escrevia. Dizias sempre para me dedicar mais à escrita e as minhas inseguranças desapareciam naquele elogio vindo de ti. Mas depois novamente me retraía. Sabia que não pouparias os reparos só por ser tua filha.
E aqui estou eu, na sombra dos teus passos, a atrever-me na expressão escrita daquilo que senti quando partiste.
Tinha de fazê-lo. Era o mínimo que te devia, depois de tanto que me incentivaste.
Quebrei os medos e agarrei neste papel.
Além disso, o que iria fazer com tudo isto que sinto, já que a voz se me emudeceu?
“O avô está nas Urgências” – disse-me o Vasco.
E entre esta frase e o fim, o meu mundo ficou suspenso por um fio tão frágil, que eu senti que se iria quebrar a qualquer instante.
E foi aquele nó cá dentro. Um nó que me paralisou os sentidos e a razão.
Um telefonema, e o mundo a desabar sobre mim, num cataclismo inconcebível.
Depois, fui eu e o meu irmão, perdidos na partilha daquele horror. A noite a transformar-se num buraco negro. E a dor a aumentar, só de pensarmos que não podíamos guardá-la só para nós.
Minha mãe e minha irmã dormiam, na esperança de um amanhecer.
O resto já todos sabemos. Um sofrimento tão nosso a tornar-se inevitavelmente público, porque tem de ser.
Foi rápido demais, mas essa rapidez era-te devida. Mereceste-a. A dignidade por que sempre te debateste a acompanhar-te até ao fim.
E é isto, pai. Claro que tenho ainda muito a dizer-te. Sempre tive e tu sempre o soubeste.
Não vou agora falar do que representas para mim, da infância que tu e a mãe nos proporcionaram, das tantas memórias que vêm agora em catadupa. Agora não. Mais tarde…
Neste momento, fica apenas aqui, em suspenso, um pouco do muito que te devo. Porque acredita que precisei de arrancar, não sei bem de onde, a coragem de escrever o horror que sinto. Mas fica também aqui gravada a tranquilidade de que este foi o fim que sempre desejaste.
Do legado que nos deixas, do quanto nos amaste e nos ensinaste, também não vou falar agora. Não tenho força.
Só queria mesmo partilhar contigo a dor de perder-te, para que saibas o quanto te adoro!
13 de Novembro, 2010
Partiste no Outono, tua estação preferida – e minha!
O Outono levou-te, mas nas ternuras eras ainda promessa. Sempre serias…
Tinhas razão, pai. O Tempo passa a correr, ladrão de gestos, sonhos e carinhos.
Como tu o sabias!
4 de Dezembro, 2010
Pai! Hoje fui ao cemitério para um encontro contigo. Não disse a ninguém. Eras só tu e eu.
Procurei-te entre as lajes frias, mas não te vi. Depois concluí que não poderias estar ali. Não no meio daquelas pedras.
Encontrei-te, à saída, no verde do prado que a chuva fizera renascer.
Enxuguei as lágrimas e trouxe-te comigo.
Agora, o nosso encontro é isto. Eu a escrever-te, seguindo os teus passos, insegura, como quando aprendi a andar e te dava a mão, na certeza de que nunca me deixarias cair.
6 de Dezembro, 2010
Ainda bem que amaste tanto a vida, pai!
Assim, consigo ver-te em cada coisa, numa espécie de panteísmo só meu.
Consigo ver-te nos livros que folheio, na música que oiço e nos melros que cantam lá fora.
Também estás presente em cada tormenta da Ilha e em cada brisa morna que surge como um prenúncio de Verão.
Nos gerânios do teu jardim, nos pinheiros mansos da Galera, em cada nascer do Sol por detrás do ilhéu e em cada voo do Dom Fuas, milhafre que eternizaste, em tudo te vejo.
E no cheiro de glicínias por manhãs de Páscoa, ou das tangerinas em Dezembro. Dezembro dos teus presépios.
Em tudo te vejo, te sinto e te ouço.
Tu tinhas uma forma muito especial de apreciar tudo como se visses o mundo pela primeira vez. Tinhas aquele “pasmo essencial” de criança que Alberto Caeiro desvenda na sua poesia. Por isso amavas tanto o mundo e a simplicidade das coisas. Também por isso te revoltavas tão facilmente contra a impiedosa passagem do tempo e te angustiavas tantas vezes pela vida que ias deixando para trás e te fugia como areia entre as mãos.
Tenho tanta pena de teres deixado tudo para trás! Ainda era tão cedo! Mas ainda bem, pai, que amaste tanto a vida, porque assim posso amar-te em cada coisa.
Ainda Dezembro
Praia do Pópulo
Lembro-me de uma manhã noutro Dezembro, há tantos anos que nem sei! Vim aqui com meu pai tomar o último banho do ano. Era um daqueles dias puros, de um fresco vidrado, que despertam toda a nossa energia. O mar de inverno, transformado num festival de espuma. Eu e meu pai saltando na água como duas crianças, num ritual todo feito de vida.
A alegria que então senti naquele momento mágico em que era só eu e ele! E a espuma a envolver-nos e a euforia de ser Dezembro e de estarmos ali os dois mergulhados nas ondas.
A sensação de desafio, por sermos os únicos na praia a enfrentar aquele mar de inverno com o seu brilho de prata.
O meu pai ainda tão jovem a gozar o melhor da vida naquela manhã de Dezembro há tantos anos que nem sei!
E eu com ele, naquele momento que foi só nosso!
Janeiro, 2011
O Natal aconteceu e nem tive coragem de escrever. Só queria que passasse depressa. Pela primeira vez desde que nasci, o Natal não foi onde devia ser – em
casa de meus pais, meu país de origem, berço do que sou.
Este ano, para não sentirmos tanto o vazio que deixaste, fomos para casa do Fernandinho. Mas o vazio foi connosco. O ambiente estava acolhedor e tudo se fez para que nada faltasse, mas faltavas tu e nada houve a fazer quanto a isso.
O teu filho fez um brinde em tua homenagem, lembrando a importância que sempre tiveste para nós. Depois foi o silêncio que desceu como um vidro gelado a lembrar a fragilidade do que somos. E foram ainda as lágrimas que me assaltaram ao ver o meu irmão com a voz embargada e os olhos vidrados, na dor de não te ter ali.
Mas sabes o que foi mais doloroso, para além da tua ausência à mesa da consoada? Foi deixar a tua casa fechada, vazia de ti e de nós. Foi deixar o silêncio instalar-se nessa casa que enchias de música, gestos simples e carinhos tão teus. Vazia da tua voz a lembrar que, apesar de tudo, esta era a festa do Menino. Foi o escuro que caiu na tua sala onde durante todos os anos, desde que me lembro de mim, brilhavam as luzes destes dias e dominavam as vozes das crianças que nós fomos e dos teus netos que foram vindo. Foi, ainda, a terrível consciência de saber que nunca mais…
9 de Março de 2011.
Partiste há quatro meses. Caramba! Como custa! Nunca tinha estado separada de ti mais do que trinta dias! Agora é esta saudade que me esmaga na certeza do irreversível, na certeza de que não haverá um cais de regresso onde nos possamos, enfim, abraçar.
Um abraço, Pai!
Maria João