Aceitei a incumbência de descobrir, entre os papéis de um livreiro, elementos que revelassem a persistência de um tempo que ficou lá atrás, semeado nas décadas de 50 e 60, e lá longe, em terra e mar dos Açores, tendo por eixo principal o “banho de fraternidade”, que Manuel Pereira, que não Resendes Ventura, viveu, em boa companhia, no Seminário de Angra.
Presumi a dificuldade e congeminei vários fios que me levassem por dentro do papel a mais.
Já o tempo passara, quando, sem que tivesse de forçar as palavras, encontrei declarações peremptórias. Afinal tudo estava demasiado à vista! Comecemos por “Uma Introdução a Papel a Mais“, datada de 29 de Outubro de 2003:
“Não sou capaz de entrar no coro das manhãs submersas de Vergílio Ferreira (…) Também havia problemas típicos no meu Seminário e no meu tempo, mas muitos de nós não podemos subscrever sem reticências algumas imagens de Caetano Valadão Serpa em Uma Pessoa Só É Pouca Gente.
Para além de todos os erros e críticas, o nosso tempo do Seminário foi um tempo riquíssimo. Fecundo e maravilhoso até, em certos aspectos e momentos. A música, o teatro, aqueles Natais, também o desporto. E o ambiente intelectual? O Pensamento (…) e mais o Euntes, e mais a Academia Bernardo Vasconcelos, e mais o escutismo (…) Pedir mais e melhor? “Uma pessoa só é pouca gente”, nisso estamos de acordo. Sexualidade humana transtornada, celibato dos padres como tabu, deformações atávicas suportadas por gerações sucessivas de crianças e jovens educados em seminários, são temas que é bom afrontar, mas para mim as coisas boas superaram as negativas.” (Papel a Mais:32)
E está dito para o período vivido em Angra, que vai de 1946 a 1959, doze anos de Seminário e um de Pós Seminário. Na página seguinte, resume o período que vai de 1959 até 1968, agora já na sua outra ilha, a de S. Miguel. E, para que conste, ficou assim registado:
“Posso repetir aqui que foi o tempo melhor da minha vida? Acabou, mas quase acabei comigo de tanto me esforçar para que não acabasse. (…). Quantos passos dei na vida que hoje não daria!? Esse, porém, o mais difícil de todos, deixar de ser padre, até hoje o considero correcto e inevitável. Vou repetir: que bela experiência os meus anos de Ponta Delgada e o meu ano de Rabo de Peixe e Calhetas.” (Papel a Mais:33)
O que parecia difícil, estava, por demais, manifesto. Quando, em 2008, cinquenta anos depois, Resendes Ventura, reencontra, em Angra, os colegas de curso de Manuel Pereira, pôde resumir numa frase aquele espírito: “Fizemo-nos juntos de crianças a homens e num ambiente de grande qualidade.” (223) Facilitado o trabalho, não desisti de tentar ir mais longe, perguntando-me o que resta daquele “banho de fraternidade” (66 e 225).
Em “Papel a Mais“, há um novelo de emoções, onde ressoam saudades em cascata, fervilha uma ladainha de nomes – pessoas muitas e sempre mais pessoas, por vezes replicadas em diferentes contextos – , pululam memórias num crescendo e regista-se a nascença do sonho literário e intelectual do futuro livreiro que gostava de ler, mas sempre foi escrevendo poemas, como um outro sacerdócio. Nesta superação ou talvez antes transmutação estará, por hipótese, o segredo de uma vida. Seria capaz de o afirmar, evocando a experiência francesa de padres operários com quem, em Paris, no final dos anos 60 e boa parte da década seguinte, compartilhei esperanças, reflexão e convívio. Um deles, também entregue aos livros como revisor de provas das edições Lafon, à beira dos 100 anos, ainda estudava a sua bíblia e textos sagrados de outras religiões. Um outro, camionista de pesados, esperou pela reforma para, a pé, do meio da França, palmilhar em peregrino o caminho de Santiago. Podia confirmá-lo, com o “Diário de um pároco de aldeia”, cuja recensão Manuel Pereira apresentou nas páginas do nº 41 do Pensamento (31.03.1955). Na verdade, George Bernanos termina o seu romance com as últimas palavras do agonizante protagonista: ” Que importa? Tudo é graça.” (Qu’est-ce que cela fait? Tout est grâce.).
No mesmo registo, se insere a novela “São Manuel Bom, Mártir” (Difel, 1999), um texto existencialista, onde Miguel Unamuno retrata o drama de um sacerdote incapaz de acreditar na imortalidade, mas que dá esperança de vida eterna aos seus paroquianos aldeões. O próprio Unamuno considerava-a como súmula filosófica e teológica da sua reflexão sobre o “sentimento trágico do quotidiano”. A este propósito, e identificando proximidades, lembro que Manuel Pereira, referindo-se ao primeiro contacto com os sonetos de Antero de Quental, paixão dos 15 anos, confessou: “o pessimismo de Antero e a sua angústia entraram-me pela alma dentro juntamente com a técnica do soneto.” (27). Imagino o eco pela vida fora de haver sonhado na adolescência com o “Palácio da Ventura”, e descobrir ao fim “silêncio e escuridão – e nada mais!” Evoco este “São Manuel Bom, Mártir”, porque, pelo Natal de 2005, o recebi “com a amizade de Manuel Pereira”, a que juntou um dos seus “rabiscos”, que por vezes são asas e aqui foi chaveta alada, semelhantes aos que iluminam “Papel a Mais”. Como mensagem escreveu a palavra “tardiamente”, desenhada com a expressividade de uma revelação ainda atempada. Vislumbrei a revelação incontida de um segredo mais do que profundo.
Retenho deste episódio, em aproximação autobiográfica, o predomínio da conduta concreta das obras sobre as palavras, porque estas são insignificantes para cimentar uma profissão de fé. Aliás, Unamuno a este propósito é esclarecedor: “Nem o povo sabe o que é a fé nem porventura se preocupa muito”. (1999:81) Para o evidenciar, faço nova ligação directa a “Papel a Mais“, transcrevendo uma referência aos primeiros difíceis tempos de Lisboa, aonde Manuel Pereira chegou em Agosto de 1968: “Foram esses meses da revista (A-Z) que me salvaram a vida. Deu para ocupação, pão, remédios, renda de quarto, experiência, tempo para me curar e pensar. E para ler e escrever, conhecer o meio editorial, livreiro, intelectual e político, e sobretudo para fazer e reunir amigos.” (34)
Para aqui chegar foi preciso que se impusesse o imperativo categórico da sobrevivência, como um despojamento. Mas, para tentarmos ir mais longe nesta procura, o melhor será citar Luísa Dacosta, já que Manuel Pereira com ela se identifica para assumir uma leitura religiosa, para não dizer litúrgica, da função livraria. Transcrevo o essencial: “Uma livraria tem o seu quê de religioso e se não é só para iniciados, é pelo menos para amadores, para gente sem pressas, que sabe encontrar tempo para percorrer lombadas, acariciá-las, abrir um ou outro livro, um ritual de comunhão.” (221) Cheguei aqui depois de ter descoberto que “Papel a Mais“, profusamente recheado de muita poesia (60 poemas, e eu, dos novos, gosto particularmente do conjunto “longevidade”), apenas acolhe três dos 31 poemas publicados em “Passos de Viagem“, de 1963, livrinho que representa a substância da produção poética de Angra e Ponta Delgada, se lhe juntarmos os sete poemas que saíram no Pensamento. (Suplemento do Jornal A União, 46 números, publicados entre 5 de Dezembro de 1953 e 16 de Junho de 1956).
Reli todos os poemas que cobrem os anos de Angra e Ponta Delgada até à data da publicação, em 1963. Verifiquei que ficaram pelo caminho os que exprimem um ambiente mais religioso ou místico, como “Rumo”, “Prece”, “Encontro”, “Perdido”, “A Tua Voz” e “Breve Canção para Maria”. Nem sequer o premonitório “Rumo Inviolado” é citado, apesar de implorar: “Por entre os farrapos da minha materialidade//Faz que brote, Senhor, uma violeta de amor.”– e a prece haveria de cumprir-se em neta de nome Violeta! Posso adiantar que a explicação que adivinho se encontra no Post-Scriptum, intitulado “Elogio da Redundância”, datado de 31 de Janeiro de 2009. Cito: “Vivi o meu tempo. Estar à espera de melhores tempos para então viver e ser feliz? Não pude conformar-me com essa visão messiânica da existência humana. Por hoje posso dizer que valeu a pena assumir e manter o esforço de desembarcar de todos os mitos.” (246) Irei por isso concentrar-me somente nos poemas “Adolescente”, “Quando chover” e “Canção para o Mar” (este perde a estrofe do meio, de que gosto muito, para acolher duas estrofes de “Encantamento”), para atentarmos nesse “esforço de desembarcar de todos os mitos.”
Pedi ao amigo comum, Olegário Paz, para os trazer aqui de viva voz. (ver anexo).
Por alguns minutos, deixemos repousar os poemas, palavras, ecos, metáforas, seus silêncios e evocações. Que fique na pele, somente, o arrepio da brisa sobre o ninho vazio após o voo adolescente da ave pequena. Que se olhe, apenas, o ruído abstracto das gotas pelo chão. Que se escute o marulho do mar ciciando leve dentro do peito em ondulação de embalar. Vamos antes sentir o contraste destes poemas despidos de qualquer “imperativo de consciência” e o rosário de apelos que saltam de “Papel a Mais“. Comecemos por estes que seleccionei, entre muitos: “Sem cultura não há progresso e sem leitura não há cultura. Foi esta fórmula que construí para base do meu trabalho.” (22-3). “A opção pela leitura encheu-me a vida.” (18) “Quando uma inteligência e uma sensibilidade lêem um livro, lêem-no com todos os livros que já leram.” (24). ““Talvez se possa já considerar o livro como bem de primeira necessidade.” (235)
Esquecido tudo isso, que representa a parte mais substancial desta segunda metade da vida de Manuel Pereira, concentremo-nos, uma última vez, nos três poemas que restam do tempo/ambiente, “feliz” e sem lágrimas, de Angra e Ponta Delgada. A minha convicção é a de que a Poesia permitiu que sobrevivesse à saída da Ilha nesse Agosto de 1968, plantando-a na alma, sobrevivesse às lembranças que doem do processo da CULDEX e da construção da CULSETE, sobrevivesse às angústias da devolução dos livros, ao sufoco dos manuais escolares e à hesitação das feiras de Santiago, sobrevivesse aos mal-entendidos dos projectos, à crueza dos balancetes e do fisco, também ao cigarro que vicia e desculpa, aos bancos qu
e espreitam, à metamorfose do Manuel Pereira em Senhor Medeiros e depois Resendes Ventura, e sobrevivesse até à ambivalência semântica dos papéis que se recusam a ser papel a mais.
É tempo de me aproximar do fim, ligando a mística da livraria com a do poema. Eis a confissão: “Creio no poema como a forma perfeita e suprema da revelação: porque creio na palavra como fonte de criação dos mundos novos de cuja existência nunca pudemos abdicar.” (309) O grito “Poesia ou Nada!” (283-4), que, por várias vezes, irrompe em “Papel a Mais“, significa que sublima o desnudamento, a entrega, o sacrifício, a angústia, todos os abandonos e recusas, mesmo que reconheça que “foi menos servir a Poesia do que querer que ela me ensinasse a viver” (249), e mesmo que reafirme ” do que sou nunca saí” (262). E tudo isso, como plataforma para emergir “Sou apenas um homem//Nada mais que um homem//…//Mas a guerra que é minha//É a guerra do verde//E do mar e do pão//Do amor e do saber” (144-5), “…sempre um homem//sulcando espaços infinitos//na vastidão imensa dos destinos!” (92)
Não creio inventar se disser que, para atravessar desertos e mares, precisou de tomar o nome do avô Ventura, mestre de romeiros, e de traduzir em poemas dessacralizados as “salvas” guardadas na “gaveta dos versos do avô”. Foram o viático que permitiu que o humano, demasiado humano, de “passos de viagem” sobrevivesse em “papel a mais”, porque “inventar o que sou com o que faço//é o terreno próprio da liberdade.” (256) E termino por onde comecei:
Era uma vez um livreiro que gostava de ler e se fez mediador de leitura, enquanto escrevia poemas para se salvar.
Queluz, 27 de Novembro de 2009
Esaú Dinis