Memorandum
João-Luís de Medeiros
ERA UMA VEZ UM OPERÁRIO …
Naquela quadra pré-natalícia de1981, nos corredores da indústria têxtil da Nova Inglaterra, já era possivel escutar o murmurar errático da moda: – “Óh diábe… a escravaria chinesa tá a roubá a “freguesia” aos teares americanos”… Naquela época, o famigerado sistema reaganiano (denominado ‘supply-side economics’) estava a ser testado pelos adversários da doutrina keynesiana; entretanto, a percentagem do desemprego principiara a subir desatinadamente. Apesar deste cenário desanimador, o “anjo da guarda” conseguiu que o signatário fosse admitido para trabalhar no second-shift da populosa unidade industrial, considerada quartel-general do operariado emigrante, na grande-área fabril de Fall River – Quaker Fabric Corporation.
Ainda hoje considero que fui bafejado pela boa sorte: a convivialidade étnica-operária e a adaptação ao ritmo laboral estavam a decorrer sem sobressaltos de maior. O nosso “bossa-verdasca” era boa criatura, apesar de actuar como gestor treinado na velha escola do ‘taylorismo-militarista’, estilo considerado adequado para lidar com o “emigrante-refém” da ditadura da necessidade…
– John, sabes somar?
– ?!…
– Ora vê lá! … Repara ali mesmo ao fundo… yes, ali mesmo: estás a ver aquela montoada de rolos de tecidos para inspeccionar? Quero que identifiques e registes os defeitos encontrados no tecido… Ok?
Estas foram as primeiras instruções recebidas, na nossa inesperada estreia de operário fabril, cerca de três semanas após a chegada aos States (ainda com as costas mornas dos cadeirais do hemiciclo de São Bento). Foi aliás o começo duma experiência singular, que nem todos os participantes gostam de recordar, ou traduzir na linguagem do artesanato tradicional da comiseração étnica. No caso pessoal, tratou-se duma experiência insubstituível (para não dizer psico-culturalmente gratificante) do ponto de vista de quem muito preza a aprendizagem da liberdade: “creative minds always have been known to survive any kind of bad training”.
Não se pretende romantizar (a posteriori) a saga quotidiana do emigrante feito operário por acidente; nem vale a pena descrever, com requintes gulosos de cínica intelectualidade requentada, a humilhante ansiedade dos que, por exemplo, alguma vez tiveram o azar de receber o famigerado aviso cor-de-rosa de despedimento dito temporário; nem seria pedagogicamente proveitoso ilustrar aqui o triste rol dos disparates, ou os ocasionais incidentes que a ignorância cívica e a indigência cultural fomentam, para gáudio dos amanuenses da miséria alheia.
Excluindo um ou outro momento mais complicado para o equilíbrio dos egos envolvidos, exercer o ofício de “operário fabril” é como frequentar aulas na universidade da Vida: há os que permanecem pela vida aprendizes da guitarrada da sobrevivência; outros vivem concentrados na afinação (em dó-menor?) das cordas do tempo. Acontece que de quando em vez imagino-me a escutar o tom solidário de vozes de gente da nossa gente: Luís Índio Borges (valoroso membro da equipa dirigente de Recursos Humanos, na época coadjuvado pela experiência étnico-laboral reconhecida à funcionária Eva Custódio); jamais esquecerei a leal camaradagem de João Francisco Aguiar, um cavalheiro que (apesar da sua real valia cívico-cultural) jamais se colocou em “bicos-de-pé” na busca de ‘alforrias’ das mordomias comunitárias… E a lista continuaria, mas por agora recordarei apenas o tom preventivo-humorista da voz do Arthur Quintal, que me ensinou a identificar os ‘defeitos’ tecnicos oriundos da tecedura dos rolos separados para inspecção; curiosamente, foi ele ainda quem um dia me avisou (alertou?) no seu inconfundível portinglês:
– Eh Jhône, tens muite “estáfe” nessa cabeça, mêrrique hóme! O bossa quande dé por isso, tás despacháde…
… Pois bem: iremos em breve admitir que o companheiro Arthur Quintal sabia do que falava…
Era costume, no período natalício, a direcção da QUAKER oferecer um jantar-convívio aos trabalhadores. Fomos na altura avisados de que o local de convívio chamava-se Benjamin’s Restaurant (que ficava ali pr’ós lados de Taunton, Massachusetts). Na época, o dono do negócio tinha muita “proa” na qualidade da sua cozinha, e na variada colecção de vinhos, alguns oriundos da região californiana chamada Napa. Na véspera da confraternização, o ‘bossa’ de serviço (um luso-americano que não manifestava orgulhoso da sua ancestralidade lusíada) entendeu fazer um aviso solene às suas “tropas” operárias:
– Eh folks, p’ra quim nã sába fazer “nó” do gravate, no problems: I’ll be perto do gate p’ra dá help… ok?
… / … ora bem: em relação ao fardamento para participar no jantar, o nosso caso não pareceu complicado, devido à circunstância de ainda dispor das sobras do vestuário que o ex-parlamentar trouxera na sua bagagem de emigrante. A certa altura do apetitoso jantar, alguém veio a terreiro elogiar os vinhos franceses. Acabei por me aperceber que um dos convidados sentado nas vizinhanças da nossa mesa, era o engenheiro francês – técnico-representante de teares Jacquard (marca francesa muito acreditada na praça têxtil de Fall River). Aliás, não foi preciso muito tempo para descobrir que a qualidade oral do meu portinglês não rimava com a qualidade do vinho francês. A páginas tantas, como sói dizer-se, comecei a usar lascas antigas da língua francesa que aprendera na escola. Não admira que o ‘nosso” engenheiro ficasse, compreensivelmente, sensilibizado com o carinho dedicado à sua língua materna. Creio que na altura, por uma questão de brio circunstancial (sobretudo para minimizar o meu déficit no uso do Inglês coloquial) procurei não maltratar a língua francesa…
E assim foi: começámos por falar superficialmente de assuntos vários, a começar pela recente vitória de François Mitterand (que fora eleito seis meses antes), sem todavia abordar questões técnicas ligadas aos teares da tal marca Jacquard… Mas essa não foi a impressão retirada pelo nosso vigilante bossa: depressa compreendi que ele não tinha apreciado o meu “micro-show” linguístico. Fiquei com a vaga impressão de que um indisfarçável tremor lhe trepara até ao umbigo-étnico da sua insegurança pessoal…
E assim terá sido: três semanas após o convívio natalício, fui obsequiado com a famigerada “guia-de-marcha” que formalizava o meu “despedimento-temporário”. Falta lembrar que na circunstância, fui ‘mimado’ com a vaga promessa de me ser facultada uma segunda oportunidade de emprego, noutro departamento fabril da mesma empresa. E assim foi. Não durou um mês, e acabei sendo readmitido no departamento R&D, com uma remuneração horária acrescida de 50 cêntimos.
Entretanto, o tempo e eu fomos prosseguindo viagem… (e a nossa Autonomia Açoriana definhando, social-democraticamente).
Espero merecer Vida para aprender alguns dos segredos do idioma da realidade: idioma deveras complexo, exigente, e creio que mais idiomático (hermético) do que a frágil gritaria do universo capitalista. Ainda hoje, a tal pergunta parece estalar o tímpano da minha memória:
– John, sabes somar…?
– ?!…
PS – (a) … à distância de três décadas, já não recordo se tive fôlego linguístico suficiente para responder àquela pergunta corriqueira,
embora razoável e não maldosa. Só sei que até hoje, não consigo somar interesses. Contudo, persisto na teimosia de ir somando as
experiências aos entusiasmos. Depois da minha partida para o cruzeiro final, poderá acontecer que os meus netos tenham a fineza de
conferir se a ‘minha’ soma resiste à “prova-dos-noves”…
(b) – acabei de rubricar o último Memorandum de 2011.
Sinceros desejos de quer os eventuais leitores desta crónica tenham um Ano feliz, com boa Saúde, Alegria & Paz. Assim seja.
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Rancho Mirage, California
Dezembro, 2011
Imagem de: http://naturallyadvanced.files.wordpress.com/2010/11/textile-industry.jpg