O Espírito Santo Emigrante
O culto em louvor ao Espírito Santo, a tradicional celebração vivamente manifestada nas comunidades de emigrantes açorianos espalhados no mundo é a maior expressão de transnacionalidade cultural. Constituem a grande referência da presença açoriana em qualquer latitude. É a sua identidade e seus significados mais profundos, totalmente enraizados no cotidiano do Arquipélago e das comunidades de emigrantes e de luso-descendentes.
A cada novo ciclo do Divino pode-se observar as muitas faces dos diferentes rituais que se reproduzem sem, contudo, se afastarem da essência do louvor ao Espírito Santo. O celebrar será sempre singular – seja lá no Império do Monte na Ilha das Flores, “na partilha do pão da vitória” ou “na benção das rosquilhas” do Pico; seja nas novenas cantadas pelos foliões do Ribeirão da Ilha, na elegante e luxuosa coroação de Santo Amaro da Imperatriz em Santa Catarina ou na cantoria dos foliões saudando o casal Imperador na freguesia de Santa Bárbara, na Ilha de Santa Maria, onde tudo começou. Ou, ainda, o tradicional jantar de sopas e carne servido a toda a gente que aparece na festa, nas comunidades da Califórnia e nos Açores num grande convívio de solidariedade e partilha. “Uma coroação de Espírito Santo não é apenas o que se come e o que se bebe, nem a festa com foguetes ou com encontros de amor. É também a devoção, sobretudo a que brota da cerimônia na igreja, herdada de fé, testamentada de geração em geração, do berço à sepultura”, escreve Álamo Oliveira em Burra Preta com uma lágrima (1995:18).
Muito mais se poderia falar sobre as Festas nos Açores e sua expressão na diáspora como os quartos do Espírito Santo, as despensas, a bandeira encarnada, os cortejos, as procissões ou as paradas da América com suas “Queens” portando capas ricamente bordadas, fruto de promessas feitas ou de graças alcançadas por intercessão do Divino, numa relação de contrato entre o homem de fé e o Espírito Santo (uma realidade social retratada por Katherine Vaz no belíssimo conto “O Homem que era feito de Rede”, 2002 (tradução de Vamberto Freitas). Promessas que também vão sendo cumpridas em festas realizadas nos Açores, cito a da freguesia das Ribeiras, Vila das Lajes, Pico, um legítimo “torna-viagem” de uma tradição já alterada ao longo dos anos.
As Festas do Espírito Santo têm importância primordial na formação do corpo social açoriano e marcam de forma extraordinária a vida cultural daquelas sociedades onde a sua presença representa um passado distante, uma geografia de afetos, uma história comum com mais de 265 anos como em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul e em outros estados brasileiros: Maranhão, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Goiás, Tocantins, Bahia, Sergipe e Amapá só para exemplificar.
Identifica-se nos Açores, aspectos significativos e característicos na forma de cultuar e celebrar o Espírito Santo quer por sua expressividade tradicional centrada numa seqüência ritualística e simbólica nos Impérios ou Função, na procissão das coroas, na missa da coroação e nas Bandeiras do Divino; quer pela vivência da caridade nos bodos, na distribuição das pensões e nas sopas do Espírito Santo ou, ainda, quer pela singularidade de sua viva manifestação espelhadas numa grande diversidade de costumes que caracterizam cada Ilha, cada concelho e cada freguesia, no que tange às irmandades, à organização do espaço da festa e rituais, à estrutura do conjunto de cerimônias religiosas, às promessas, à preparação e circulação de alimentos e, finalmente, às mudanças provocadas por acréscimos ou inovações na temporalidade, na forma, no conteúdo e no ritual da festividade sob a forte influência dos emigrantes no seu “torna-viagem”.
Uma veneração que chegou aos Açores nas caravelas dos Descobrimentos, em meados do século XV, com os primeiros povoadores, atravessou os mares do tempo e aporta no século XXI como uma tradição religiosa forte, intensa na sua manifestação, herdeira de um patrimônio simbólico que consubstancia o imaginário insular, onde o sentido espiritual do sagrado se encontra com o espírito da solidariedade, da fraternidade nas vivências profanas das celebrações. Onde a partilha do espírito comunga com a partilha do pão, do vinho, da carne revivificados no festivo e solene ritual ano após ano.
Estudar a história do culto e das festas em honra ao Espírito Santo é o mesmo que estudar a história de um povo com suas lutas, esperanças e conquistas ante a natureza abruta e as vicissitudes da vida. É penetrar numa complexa rede de interelacionamentos, de coesão social, de elos que ligam os homens entre si, traduzidos na unidade, na identidade do “ser açoriano” que ultrapassam os limites do espaço arquipelágico e alcançam as terras de emigração, nas numerosas comunidades da diáspora, do Brasil, dos Estados Unidos da América e do Canadá.
Afinal, não será ELE também um emigrante?