A verdade é que, lá ao fundo, alguém martelava chapa ou coisa assim. Como não estava no nosso campo de visão, aceite o título, se faz favor. Até porque tem algo de romântico nele.
Estava, então, a rua deserta, quando iniciámos, eu e a minha mulher, a distribuição dos folhetos. Que folhetos?! Ah, pois, tem razão, preciso de voltar um pouco atrás.
Na véspera, um dia frio de Março de 2003, aquela mesma rua chamava-se, até ao cair da noite, “Rua D”. Às seis, num baptismo com fatos e gravatas, discursos e lágrimas ao canto do olho, passou a chamar-se Rua Cidade de Porto Alegre.
Sei quem foi o responsável por isso, mas a minha modéstia impede-me de o revelar. Só me autorizo a admitir que, não satisfeito com essa homenagem da minha cidade aos casais açorianos do século XVIII fundadores da capital gaúcha, achei justo dar conta aos moradores dos fundamentos de tal gesto.
E chegamos aos folhetos. Feitos em casa, eram bonitinhos, resumiam a saga dos casais, falavam do Rio Grande do Sul e dessa enorme Porto Alegre e procuravam acender a chama do orgulho por essa brava gente de mil setecentos e tantos.
A intenção era boa, mas um casal de maduros distribuindo folhetos foi má estratégia.
Pensando bem, tínhamos um ar suspeito.
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– A senhora é a dona da casa?
¬ – Sou, sim.
– Óptimo! Queremos deixar-lhe este…
– Ah, não, muito obrigada. Sou católica. Vou à missa todos os domingos e sou muito devota do Santo Cristo. Não quero ouvir falar de outra religião!
– Mas, minha senhora… Só queremos dizer-lhe que…
– Já disse que não. Sei como vocês começam, assim, de mansinho. Com licença!
A porta era de boa qualidade. Aguentou bem a batida e parece-me ter feito, até, um som um tanto musical.
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– Não entres!
Tarde demais. Eu já estava uns dois metros dentro do jardim e o cãozinho, o mesmo que vinte segundos antes abanava a cauda e parecia sorrir, mostrava dentes de anúncio de rações e fazia aquele som que em linguagem de cão significava “se dás mais um passo vais coxear pelo resto da vida”.
Não dei. Como um cobarde, inventei asas.
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– Finalmente, uma cara conhecida!
Era o Sousa, antigo companheiro da escola primária. Não sabia que morava ali.
¬ – Como vão esses ossos, meu velho? Olha, trago-te aqui um folheto que explica a história da colonização açoriana do Rio Grande do Sul, essa gesta dos nossos antepassados que se aventuraram por esse mar e…
– Foste tu!
– Como? Eu, o quê?
– Foste tu que arranjaste este sarilho a toda a malta.
– Sarilho? Que sarilho?
– Ora, homem! Já pensaste no que vamos todos enfrentar para mudar os nossos endereços, fazer novos registos nas conservatórias civis e prediais, na Segurança Social e nas Finanças, averbar a “nova” residência nas cartas de condução, na Polícia, nos Bombeiros, nos Bancos, nas escolas dos nossos filhos, até nas cartas deles ao pai Natal!
– Mas… mas esta rua não iria ficar sempre como Rua D…
¬ – Quem sabe? E nunca ouviste dizer que no adiar é que está o ganho?
Não tinha. Mas quem já está na mó de baixo não confessa outras fraquezas, pois não?
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Eu disse que tínhamos um ar suspeito. Mesmo na última casa apareceu a Polícia.
– Boa tarde. Que estão os senhores a fazer?
Nome de rua, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, gaúchos, açorianos, História… O homem vai achar-nos maluquinhos. Às tantas, ainda nos leva à esquadra para deslindar isto tudo. Ná, nem pensar!
– Apostolado, senhor guarda, apostolado.
Com uma breve continência, foi-se embora. Nós também. Missão cumprida.
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Notas Biográficas:Nasceu em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores. Jornalista desde 1969, tendo iniciado sua carreira no “Diário dos Açores“. Foi dirigente nacional do Sindicato dos Jornalistas, cargo para que foi eleito após o seu regresso da guerra colonial portuguesa, onde combateu, em Angloa, como oficial miliciano de Operações Especiais, entre 1972 e 1974. Foi Director de Informação da RTP. Ganhou, em 1989, a primeira edição do “Prémio Açores” de reportagem, com um trabalho sobre a colonização açoriana do Rio Grande do Sul. É, desde Setembro de 2007, assessor para a Comunicação Social do Presidente do Governo Regional dos Açores. Publicou A noite dos prodígios e outras histórias (2002),contos, Morreremos amanhã, romance, e Solidão, conto, na antologia Contos de algibeira (Casa Verde, Brasil), 2007.