“Estrelas” de menino…
Longe estava a madrugada. Era Fevereiro. Noites crescidas, frias… e de ténue perfume a porco morto e fumeiro na chaminé. O vento sentia-se, mas nada que se comparasse com as incertezas de outros Invernos, meses sem uma ida ao mar, meses a provar e condutar o bonito e os chicharros salgados no Verão, com batata-doce cozida, dividida entre a necessidade de matar a fome e o brio de engordar o porco para que os vizinhos lhe gabassem a altura do toucinho, que, menos de quatro dedos não era coisa que se visse.
Longe estava a madrugada. Um cobertor e duas mantas, daquelas rijas, tecidas à pancada no tear, entre o enriço da teia e a cadência do entremear dos retalhos, restos de roupas usadas, algumas com o cheiro inconfundível do sacos e dos caixotes da América.
Longe estava a madrugada, mais longe ainda as estrelas dos poucos sonhos que povoavam a casa, quase vazia de adornos e muito cheia de trabalho, suor e amor.
Toda a Vila (Franca do Campo) dormia, do Baixio ao Carneiro, que outros limites se não conheciam. Para nascente, Ponta Garça agigantava-se, comprida de légua, ruas estreitas, térreas, sem luz, progresso distante, mas garra sempre presente. Ao lado, pequenina, a Ribeira das Tainhas sonhava com tempos não chegados e a Ribeira Seca dava o nó, entre o monte e o mar, espreguiçando-se no silêncio da Calçada. São Miguel, espada em punho, era sentinela vigilante quando todos dormiam, esperando que São Pedro tivesse a chave de mais um dia invernoso, daqueles que Água d’Alto sempre sentiu de maneira diferente, altaneira e exposta aos condicionalismos naturais.
Longe estava a madrugada…Mas, de repente, do silêncio fez-se som. Da escuridão, luz, e do aconchego da noite surgiu a festa de acordes iluminados e ritmos cadenciados do acontecimento que marca e fica, como se tristezas e trabalhos dessem lugar àquele som que parecia vir do céu e que na terra já ressoava.
Cansado dos anos e do sacho pesado, fome enganada e ilusões multiplicadas, José dormia. Acordou-o a mulher, ia longe a madrugada, mas estavam perto os sons.
Era a música. Eram as Estrelas, no seu fulgor tradicional, embora no céu nenhuma brilhasse. Aos poucos, a rua iluminava-se. Janelas abriam-se e todos escutavam a toada alegre, porque banda que se preze marcha sempre ao som de um bom ordinário As Estrelas eram o fim do Natal, a última festa, enrolada na tradição e bebida no berço… Banda de música na rua, quando a noite era negra e as pautas se escreviam de dor…
Mais perto um pouco…mais som, mais ritmo, mais alegria e aquele arrepio do inesperado na noite escura.
Era a Banda. Homens tisnados do trabalho, mãos calejadas da enxada e das redes, do martelo e dos remos, garbosa, ufana, como se a noite fosse dia, como se todos os dias fossem festa. Dó maior, sol brilhante, ré sétima, fá sonoro e novamente dó. Acordes sentidos, porque as mãos calejadas também sabiam acariciar os instrumentos e a alma de cada um transbordava no sorriso de cada janela, de cada porta, de cada balcão, naquela noite de Estrelas.
A pé, da Vila à Ponta Garça, alguns intervalos para um “calzinhos” e uns biscoitos, ali iam eles, fazendo a festa, quando festa não havia. Estes acordes da noite, a ressoar na estreita rua da Igreja da Ribeira das Tainhas, gravaram-se-me na alma, de tal forma que ainda hoje não consigo desprender-me de uma festa ou procissão, sem ouvir os ordinários das bandas. Sempre me criei com a ideia de que a capacidade de uma filarmónica, ou de uma fanfarra, se medem pela sonoridade conferida aos seus ordinários. Dezenas deles, sei-os de ouvido, marciais, uns, a roçar o passo-doble outros e a imitar as grandes ouvertures de peças clássicas, outros ainda.
O som da filarmónica leva-me sempre ao sonho de “Estrelas” da minha infância, e só quem vive em São Miguel, nos Açores, poderá perceber o quanto de poético e de menino há no som que rasga as noites do abrir de Fevereiro…
Santos Narciso
em 2 de Fevereiro de 2013
foto arquivo Correios dos Açores
(*) Do Autor:Jornalista José Manuel Santos Narciso, diretor-adjunto do Correio dos Açores e Atlântico Expresso de Ponta Delgada,Açores (Portugal).Colaborador do Blog Comunidades.