FAZER VERSOS DOI
Pregar um prego, lavar pratos, cortar a erva
custa. Mas nunca nada me custou tanto que
carregar um verso das coisas mais difíceis. A fazer
do outro lado da literatura os nós do mundo.
E a desfazê-los. Para os refazer simples
andei por missas, por mares e por selvas –
fossem as puras florestas do desejo ou caves de prédios [muitos altos.
Nunca rezei por vós nem por mim porque Deus não estava,
mas em todos os sítios encontrei poesia
e dei-me a fazer versos e a fazer amor como quem se imola
e não se amola com a melancolia dos vizimhos
a vêr-me apanhar o autocarro ou a chegar
da vida burocratizada que é a profissão
de organizar processos de velhice
para os que vão morrer daqui a pouco.
Pregar um prego custa, se custa! E mais deve custar
oito horas diárias de cadência bruta nas fábricas da loucura:
(eu te digo isto, operário por quem não choro nem rezo e
nem te desprezo ao ponto de cantar as glórias do teu amanhã que não há.
porque sei que tu sabes ser a Obra tua).
Mas apalpar o verso disso também custa. A mim,
não é tanto a dor explorativa que dói mas o verso que explode
dolorosamente por trás e pela frente e em diagonal
no poema. Agora que começo a escrever a minha morte,
sabem-me os versos aos verões da infância que não houve
sabem à humidade das mesas frias onde vi
os poetas outonais que não conheço fingir que choravam
e recebiam das damas, através dum lenço
a noticia rendilhada da sua condenação à morte.
É certo: tudo aborrece quando já não há canções
iludindo a aspereza da voz que primeiro as cantou
quando se morre como o Ruy Belo de fazer versos.
Venham-me com cantigas!
Digam-me ainda o «mar» é «português»
o Senhor aguarda os «corações» que se elevam ao «alto»
as selvas servem de pulmões do mundo e não há buracos
nos lugares onde deixei bombas e me mataram
e via «morte com um sorriso nos lábios»!
Há um frio real nestes dedos e o verso de Fevereiro não os
aquece.
*********************************
Re-flexões campesinas
j. h. santos barros
1.
Por uma criteriosa escolha do verso
cheguei à parte mais escura do país. Solidões,
paisagens mortas, animais tristes,
uma literatura perseguida – em vão – por alguns ocultos
crânios. Aí o encontrei, surpreendido, com óculos
aconchegados aos ossos da sua face. O que é humano
no verso é a incerteza de ele mesmo
chegar ao fim. Divagando, mas atentamente, pelo solo
tentação de alinhar sóis, os poucos sinais
de saúde do mundo. Torna-se inviável a construção do texto
para o comércio e indústria. Acrescento à nula erudição do verso
pequenos símbolos poéticos desbaratados nas lutas de classes e géneros
literários alimentícios: os pássaros, o mar, a lua
e até a técnica do soneto.
Perdidos para estrume da terra, do verso.
2.
Eu descia pelos portos à procura
das cidades marítimas. Marés violentas
batiam as enseadas; às vezes sentava-me nos botes
conversando com os agrários do mar. E diziam-me:
Há três cidades à beira-
-naufrágio, e muitas outras sem rosto nem memória.
E nomeavam: Horta, Angra, Ponta Delgada
e arregaçavam mais as calças, os pescadores de algas
e silêncio. Retirava deles a lição do mergulho, retribuindo
com bagaço e cigarros. Crescia barco rumo às ilhas
de oeste.
(Sequência de 8 poemas, em «Os alicates do Tempo», 1979)
J.H.Santos Barros – Natural de Angra do Heroísmo.I.Terceira (1946) Escritor,poeta com um olhar alargado sobre as desigualdades sociais e econômicas. Sua experiência na guerra colonial (Angola)marcaria fortemente a sua poesia. Viveu em Lisboa onde desenvolveu intensa atividade cultural,especialmente no que tange à afirmação da cultura açoriana. Esteve na coordenação (1972-74) do suplemento Glacial do jornal A União(terceirense),fundou e dirigiu com Urbano Bettencourt a revista de cultura açoriana «A Memória da Água-Viva» (1978-1980),coordenou desde Lisboa o suplemento Contexto do jornal Açores (1979-1983),de Ponta Delgada. Parte de suas intervenções escritas foi reunida em 20 anos de Literatura e Arte nos Açores (Col.Grajaú,Lisboa,1977) e em O Lavrador das Ilhas -I (SREC,1977-
J.H.Santos Barros morre em 1983 deixando uma expressiva produção poética. Uma voz que continuará ecoando por todos os mares e ilhas do mundo.