(Vasco Fernandes Grão Vasco 1475-1542)
FÉRIAS DE NATAL
MTCabral, Advento 2012
— Ainda tens fome?! — disse o rapaz magro da barbicha rala cheio de espinhas: — Home não comas mais!
O rapaz gordo do boné ao contrário dava grandes dentadas num cacete recheado de molhos que esguichavam para o saco de papel. Disse qualquer coisa, contrafeito, mas não se entendeu, por ter a boca cheia. Usava calças descaídas que, somadas às fartas coxas, atrasavam ainda mais a marcha, provocando um frufru de romance do século XIX.
— Home pára, senão não sobra nada. Põe neste aqui.
Referia-se a um balde de lixo debaixo de uma das palmeiras no lado da praça que dava para as traseiras da igreja, a meio caminho entre a pizzaria e o liceu. O rapaz gordo de boné ao contrário limpou a boca suja com o saco de papel meio, e depois atirou-o fora, com raiva.
Isto foi no intervalo do almoço, quando a praça está repleta de alunos que namoram, riem, berram palavrões, jogam à bola ou fazem acrobacias ora com skate, ora com bicicleta.
Normalmente as aulas acabam às quatro e meia; mas, como eram os últimos dias antes das férias do Natal, saíram numa visita de estudo, mesmo ali, à Bombaria, para apreciar uma exposição de presépios. Atrasaram uma meia hora.
Quando voltaram à praça já se anunciava o crepúsculo. Mesmo assim esperaram, sentados num banco mais escondido, com as mochilas atiradas ao chão.
— Como é que o Ratão vai apanhar positiva a História e eu não? — disse o rapaz gordo do boné ao contrário.
— Home percebeste mal. A professora referiu-se a Atitudes e Valores — respondeu o rapaz magro de barbicha rala cheio de espinhas, enquanto, de mãos nos bolsos do blusão de napa, rolava entre os dedos um preservativo que tinha sido oferecido por uma enfermeira que fora à aula de Educação para a Cidadania.
O outro estava a clicar a alta velocidade no telemóvel, ligado a um dos ouvidos por um auscultador branco.
— Mesmo assim. Que eu estou sempre a falar contigo, virado para trás. Uma coisa é falar virado para trás, outra é levantar-se e bater com a porta, depois de mandar uma dúzia de palavrões para a turma inteira.
O rapaz da barbicha rala cheio de espinhas levantou ambos os pés ao mesmo tempo e bateu com eles no chão, ao mesmo tempo que batia palmas nas coxas, rindo como uma hiena:
— Ei, meu, viste a cena, a professora a dizer: “João, não te enerves, João”. A gaja tem medo dele, é o que é.
— Também quero que se lixe História. Para que é que um gajo tem que saber coisas do passado, que não interessam para o presente. Qual o rei que ganhou a primeira batalha, e assim. Quero é que se dane!
Quando o velho apareceu, vindo da frente da igreja, no sentido contrário de quem ia para a missa, já estava escuro. Não era bem velho, antes porco – até era bem constituído, mas com a barba branca por fazer e o beiço inferior descaído, com ar meio aparvalhado. Arrastava os sapatos como se fossem chinelos. Andava devagar e parava ao ritmo do cão, que trazia sempre amarrado por uma corda grossa e comprida.
O rapaz magro da barbicha rala cheio de espinhas deu sinal ao rapaz gordo de boné ao contrário. Calaram-se ambos.
O cão aparelhava bem com o dono: era um rafeiro cor de mel, a tender para o velho, mas robusto. Tinha uma peladura num dos lados e saltava o muro dos canteiros para mijar nos troncos das palmeiras. Voltava a descer e farejava os caixotes de lixo, apoiando as patas dianteiras no rebordo das bocas. Às vezes o dono repreendia-o com voz de cachaça e valentes puxões na corda várias voltas embrulhada na mão.
O cão inspecionou o caixote próximo do banco dos rapazes e esgravatou entusiasmado, até conseguir virá-lo ao contrário. O lixo espalhou-se em redor. O velho baixou-se.
— Vês vês, não te tinha dito?! — sussurrou o rapaz magro da barbicha rala cheio de espinhas ao ouvido do rapaz gordo de boné ao contrário.
O polícia saiu do nada, ao mesmo tempo que a carrinha do lavrador parou, chiando. Era novo, armado em cowboy. Puxou as calças para cima e poisou uma das mãos sobre o revólver e outra sobre o cassetete. O velho bateu no cão, aos socos e pontapés. O bicho encolhia-se e guinchava. Da carrinha vinha um fedor de silagem misturado com bosta de vaca. O lavrador martelou na buzina.
Os rapazes levantaram-se, a rir, pegaram à pressa nas mochilas e correram para a carrinha na mesma altura em que o cão conseguiu libertar-se da mão do velho, que o polícia agora segurava por um braço bem apertado. Parecia que fugiam do animal em fuga.
O lavrador nem deu por nada. Usava boné e fumava charuto. Tinha a camisa de xadrez aberta uns três botões, permitindo que se visse o peito cabeludo grisalho. Cuspiu através dos beiços em posição de quem toca flauta transversal. Estava todo concentrado na parte de baixo da mulher que passava atrasada para as aulas da noite. Ela usava umas colans creme e umas botas altas à mosqueteiro. Àquela luz, parecia que se esquecera da saia.
O polícia arrastou o velho para a esquadra, muito próxima, atrás da Bombaria.
Entretanto, já era noite e a praça estava vazia. Por causa da crise, metade das lâmpadas públicas estavam fechadas. O cão voltou, arrastando a comprida corda atrás de si. Ficava, por isso, preso aqui e ali, e tinha de trabalhar pela liberdade. Dirigiu-se ao monte de lixo e devorou o resto do cacete. Depois, gemendo, baixinho, farejou o rasto do dono, que seguiu, desaparecendo no escuro.
O sino repicou; levantou a Deus. A noite estava fria, mas limpa. Tempo norte. A lua quarto-minguante orquestrava miríades e miríades de estrelas silenciosas.