Fernando Aires
– para lá do diário
Num ano lectivo que não consigo precisar, convidei Fernando Aires para participar numa aula de Literatura Açoriana, disciplina que eu leccionava na Universidade dos Açores. O objectivo era pô-lo em contacto com os alunos, em particular com aqueles que se tinham ocupado da sua obra e aproveitavam a presença do escritor para apresentar os resultados do seu trabalho, ao mesmo tempo que se aproximavam do «ser vivo» que existe por trás de cada texto e lhe dá forma e corpo. Desse encontro guardo ainda hoje a memória de um diálogo afável e descontraído sobre os textos em discussão, sobre a vida do escritor e os seus processos de escrita, a sua «formação», as leituras, os autores de estimação.
O que talvez possa surpreender, no entanto, é que o pretexto para esse encontro não era a escrita diarística de Fernando Aires, precisamente aquela que lhe proporcionara um lugar único no âmbito da literatura açoriana, em que o diário não é um género com representação ou presença referenciável. Os cinco volumes de Era uma vez o tempo (com um corpo de entradas que vão de 18.12.1982 a 17.7.1999) constituem, efectivamente, no contexto açoriano um fenómeno singular: pela sua raridade ou solidão, mas também pela particularidade de uma «voz» que, do interior do registo próprio do género, vai construindo um perfil autoral com os seus gostos literários e musicais bem definidos (e muito selectivos), a família, a relação com amigos e companheiros de percurso literário e cultural, o rasto das viagens, a fortíssima presença do tempo insular, melhor dizendo, insulado, na sua dimensão física, psicológica e histórica também.
Não era por aí, no entanto, que os meus alunos tinham chegado a Fernando Aires. O que os levara a ele tinham sido as Memórias da Cidade Cercada , um conjunto de contos que, juntamente com Histórias do Entardecer e a novela A Ilha de Nunca Mais , ficam a constituir o legado do autor no domínio da ficção narrativa.
Não sei bem qual o efectivo valor que Fernando Aires atribuía a esta outra dimensão da sua escrita, o lugar exacto em que situava estas narrativas no conjunto da sua obra e o «peso» relativo que aí lhes dava. Na dedicatória que me deixou em Memórias da Cidade Cercada (MMC), refere-se às suas histórias como as «frioleiras de um homem já entrado em anos e desesperos», mas o tom auto-depreciativo não deve ser lido para lá daquela confissão retórica de humildade que prepara o leitor e o previne contra expectativas demasiado elevadas quanto àquilo que lhe é apresentado.
Se nos ativermos à matéria narrada de MCC, detectaremos aí algumas constantes igualmente verificáveis nas páginas do diário, mesmo que noutro enquadramento e com diferente funcionalidade, uma série de circunstâncias e constrangimentos, sociais, históricos, pessoais, que poderíamos reunir sob a designação sintética de «condição insular»; trata-se não só de representar os modos variados como a realidade «ilha» afecta o destino das personagens e o determina mesmo, mas também as diferentes percepções que as personagens têm dessa mesma realidade e interiormente a vivem. É certo que as condições materiais de penúria e a falta de perspectivas de realização pessoal provocam o desejo de sair em busca de outras terras e sociedades mais propícias (e o Brasil é, em Fernando Aires, um destino de referência; por outras razões, também Coimbra, tornada lugar de nostalgia do insular desterritorializado), mas a isso há-de juntar-se ainda a particular consciência das reduzidas dimensões do espaço insular, o «mundo abreviado» a que se referia Nemésio; neste sentido, a «cidade cercada» aludida no título é apenas uma sinédoque do todo que é a ilha. Tudo isso conduz a diferentes experiências de errância, de desenraizamento também, e explicará, em parte, que a ilha-prisão de outrora se converta agora, quando distante, em matéria de afectos e se coloque no horizonte físico e íntimo como lugar de regresso e refúgio definitivo.
Numa outra hipótese de leitura, aquilo que me parece marcar a narrativa de Fernando Aires é uma certa dimensão simbólica, que passa tanto pela figuração da personagem como pelo seu percurso, gestos, pequenos sinais, conjugando traços generalizantes e abstractos comuns a um determinado universo estético e discursivo vagamente romântico. A narrativa que abre MCC «a jeito de prefácio» pode ser um bom exemplo disso, compondo um conjunto em que o difuso e o incerto se combinam numa narrativa de registo lírico que, associado ao desconhecimento e ao enigma, acentua a dimensão excêntrica da personagem, rodeando-a aos olhos dos outros de uma aura de estranheza e de mistério. Esse perfil recorta-se ainda noutros contextos narrativos, e com variações, em qualquer dos casos pondo em evidência o carácter singular da personagem: a sua concepção do mundo e da vida, do lugar do homem no seio da sociedade, o seu espírito superior, fazem da personagem um ser incompreendido, exactamente pelo diferencial e o conflito entre o idealismo individual e o prosaísmo colectivo, o das massas. Assim, o que resta a essas personagens é um mundo construído na margem da sociedade, com o que isso implica de preconceitos, suspeições e, no limite, a ruína e a destruição pessoal. Elas, as personagens, serão, de certo modo, ilhas metafóricas dentro da ilha literal e física.
Há um momento de MCC em que o narrador de uma das histórias deixa registado o seguinte: «escrevo sobre estes pedaços do tempo perdido como se fosse possível extraí-los, intactos, da confusão do já acontecido, e mostrá-los tal e qual» (p.32). Em contexto evocativo da descoberta da leitura e de confissão do papel da memória como desencadeador da escrita, explicita-se também aqui a descrença quanto à possibilidade (ou o interesse) de esta última constituir-se uma transposição fidedigna do passado. A escrita é sempre um processo de transfiguração de experiências, vividas ou possíveis, e a narrativa de Fernando Aires cobre de um manto de melancolia os percursos das suas personagens, num procedimento muito mais recorrente do que aquele outro referido pelo autor numa entrada do diário sobre o seu ofício de escritor:
«De uma vez, descrevi um velório onde, com efeito, se levou o desrespeito pelo morto creio que demasiado longe: conversou-se em voz alta, com animação. Generalizou-se a conversa à maneira solta das reuniões sociais.(…) Propositadamente, intencionalmente deformei, chegando ao ponto de afirmar que se contaram anedotas e se comeram pipocas e amendoins quando não se comeram. Por estranho que pareça, é esta a forma de revelar a “verdade”: inventar para ficar mais perto da verdade, e poder comunicar essa “verdade” a quem não participou dela.»
Como sabem os leitores de Fernando Aires, este processo de deformação caricatural não é o mais comum na sua escrita e mesmo um texto como «As pessoas (des)aconselháveis» não ultrapassa os limites da conveniência e do decoro, ficando-se pela sátira contida e por uma elegância que talvez seja o timbre pessoal de uma escrita e de uma vida.
Urbano Bettencourt
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4. Fernando Aires, Era uma vez o tempo. diário IV. Lisboa, Edições Salamandra, 1997, p. 50