Fernando Aires,com veras da alma…
Já descobrira o escritor Fernando Aires. Há muito tempo caíra no cerco da sua prosa poética onde bailam palavras esculpidas com elegância, dignas de um esteta. Uma escrita linda emoldurada por uma profunda açorianidade, com todas as “veras da alma”. Pois é. Bem sei que há muitos tipos de cercos…mas fui enredada pelo cerco dessa escrita tão verdadeira e frontal quanto bela,terna e sensível que encontrei nas páginas do seu Memórias da Cidade Cercada,um livro de contos urdidos com a metáfora prima: “o cerco ilhéu” – “o código em que a gente se mete para viver não se altera assim,sem mais nem menos. Estratifica dentro de nós como uma lava que esfria”.
A linguagem clara, cadente, ágil no fluir, descreve, a partir do microcosmo ilhéu e de registros de memória do autor, o sentir a vida na ilha com a intimidade nativa, com a sabedoria de quem entende de todos os cercos, de partidas ou fugas, sejam elas reais ou imaginadas. Conduz seus contos com pleno domínio da palavra, usando da realidade como alicerce da construção ficcional de cada história e personagens que passam a vida a transitar na complexa teia da interação social, desembaraçando os fios emaranhados nas vivências e nos códigos sociais e morais do mundo fechado da ilha, do cerco do mar.
Memórias da cidade em seus múltiplos cercos ou prisões, do espaço transfigurado pelo avanço da modernidade que provoca mudanças sociais inexoráveis. Memória coletiva, arquivos de um passado não tão distante. Dali ressoam os ecos de um percurso histórico por caminhos da emigração “antes que a memória se extingue assoprada pelo vento.” A historicidade de um povo marcado por conflitos e culturas, pela condição de estar fora da Ilha ou dentro dela e ter a alma banhada no mar salgado.
Por final, suavemente, abre as comportas da memória mítica e deixa passar “a ficção do tempo findo por entre os cheiros dos mognos,dos jacarandás.” Abre o coração e narra com tanta proximidade e simplicidade como se partilhasse imagens, ritmos, sons e confidências. “E fiquei-me entregue às brancas praias,eco perdido num outro vale. A certidão de que,ali, pouca gente (ou nenhuma) teria a ideia do que representa, para a vida, o roçar de outras vidas no espaço que é nosso.”
A escrita espacial de Fernando Aires esbanja luminosidade, cromacias, musicalidade, aromas. Fala de saudade, um fio de nostalgia tecendo o tempo intemporal. Nada excede. Tudo está no seu devido lugar, a seu jeito. Nem poderia ser diferente. Seu estilo é inigualável. É de uma leveza poética ao alongar seu olhar e descrever a beleza da paisagem singular ou de uma bonita manhã de sol fulgente, como se fosse um pintor e as palavras as cores do arco-íris derramadas na alva tela. É, igualmente, forte, contundente, incisivo, irônico e crítico na narrativa ficcional ou em textos de opinião onde o saber do mestre se sobrepõe.
Memórias da Cidade Cercada comove, e muito, por seu intenso interiorismo, pela incessante busca de respostas aos sonhos e anseios do autor, como uma redenção pessoal e de todos, um renovado sentido de viver – “ a sensação de ter lavrado uma terra fecunda e reaprendido,assim,o ofício de viver.”
A escrita literária é antes de tudo um trabalho artístico e o escritor é o artífice que dá forma sensível à matéria palavra, que configura com sua pena-cinzel o “quid próprio da obra de arte” – o livro. Uma lição do mestre Eduíno de Jesus e que identifica uma das mais belas forma de expressão açoriana, a arte literária de Fernando Aires. Em seu diário, Era Uma vez o Tempo, cinco volumes publicados entre 1988 e 1999, as ideias, as emoções, a palavra burilada se revelam em sua plenitude por caminhos da memorialidade, da autobiografia, da mundivivência insular, da historicidade, de expansivas geografias e, por vezes, por canadas da crítica literária. Constituindo-se numa verdadeira obra de arte inscrita na prosa poética e na narrativa ficcional. Tudo na conta certa como deve estar uma obra de arte.
Não estamos diante de um diário comum, um simples registro de eventos e pensamentos que, dia a dia, vai se anotando com um certo rigor e regularidade. É muito,muito,muito mais. Abraça o ser e sua vida. Sente o pulsar de tudo e de todos. Respira o lugar,o tempo ilhéu. Aconchega realidades e sonhos. Partilha sentimentos. Recorda o ontem, fala das tradições e coisas de hoje, avança por veredas do futuro desde o seu pequeno e grande mundo-ilha.
Em Diário I (6 de Fevereiro de 1985),escreveu:
“Esta terra açoriana,fragmentada e atirada a distância,pedaços de lavas dispersos pelas crateras da desaparecida Atlântida,agiu sobre a alma insular sempre em dois sentidos de fugas opostos: – um,na horizontal,de migração para longes terras:outro,na vertical,na direcção da divindade. Expansão e recolhimento interior – dois movimentos antagónicos com a mesma raíz de ínsula. Dualidade conflituosa que oscila entre o intimismo e a abertura ao mundo,entre a tensão e a distensão,entre o silêncio e a fala com os estranhos. Algo de cambiante e instável,como o solo sísmico,como a paisagem e o clima,onde as fronteiras entre a imobilidade e movimento,entre luz e sombra, entre terra e água não são bem nítidas. Por pouco não somos místicos. Por pouco também não somos “conquistadores” de continentes. Ficámos sempre a meio caminho entre o ter e o ser,entre a realidade e o sonho,entre a realização e a frustração – simbolicamente marcados no mapa a meio do Atlântico,entre dois mundos,sem pertencermos decididamente a nenhum…”
Por suas páginas vou adentrando na “Ilha datada” e tudo que está à volta de Fernando Aires – o seu universo,o seu intimismo, a sua sensibilidade em olhar para além das fronteiras e deixo-me envolver pelo encanto de sua escrita vibrante, humanista e humanizante. Página por página,passeio sem pressa alguma. Pois,em cada entrada diarística a sua alma fala por si – “[…]aquilo a que se costuma chamar de alma,e que ninguém sabe o que é.” Melancolia, solidão, ansiedade, saudade, alegria, esperança, sentimentos cambiantes que se cruzam como um tênue fio ligando os diários. Está tudo ali registrado e presente de forma absoluta: Ponta Delgada, a Caloura,o seu refúgio na Ponta da Galera,o jardim com seus metrosíderos frondosos e floridos em grená, os ibiscos,o voo solitário do milhafre,o canto melodioso dos melros, o mar da ilha e a música eterna dos grandes gênios Beethoven e Vivaldi que ouve e partilha cada movimento. Remete o leitor com frequência ao amado círculo familiar que dá sentido a sua vida e aos amigos de sempre. Ensina:”Ao amor e à amizade é preciso reinventá-los, limpá-los do pó das palavras mal soantes e das que não foram ditas. Criá-los junto ao peito,na abundãncia dos sentimentos. Fazer deles um banquete festivo e inexplicável,todo feito de harpejos de prazer e das formas belas do imaginar. Assoprar neles o fogo oculto do que foi dito e sentido na hora máxima do contentamento.”(Diário III, 1991,p.86).
Uma reflexão preciosa de quem soube (como poucos) cultivar o sentimento da amizade, da cumplicidade de afetos, compartilhamentos e respeito mútuo. Bonito de se ver num mundo de tantos desencontros. O que me faz recordar de um grupo de amigos, escritores e poetas que, no vigor da juventude, fundaram o Círculo Literário Antero de Quental (CLAQ), em 1946, com a pretenção de promover a revolução dos costumes literários de Ponta Delgada e a difusão do movimento modernista na Ilha. Uma inquietação cultural que “se destinava a acabar com o conservadorismo que estagnava as letras açorianas”, como escreve Fernando Aires ( Diário V,1999,p.62) um dos mentores do grupo juntamente com Eduíno de Jesus, Fernando Lima, Jacinto Soares de Albergaria, Eduardo Vasconcelos Mon
iz . Dois anos depois, entrariam Carlos Wallenstein, Rui Guilherme de Morais, Mario Barradas, Machado da Luz. O Círculo Literário Antero de Quental, também chamado de “Grupo Jade,” ( por fazerem do Bar Jade ponto de encontro e de tertúlias) representa os anseios de uma juventude intelectual sedenta por mudanças culturais e pela liberdade criativa oferecida pelo modernismo. Sobretudo,é o marco legal para o desenvolvimento de um futuro sistema literário açoriano. Mas, também significa os laços de uma amizade que o tempo só fez fortalecer para toda vida.
A propósito dessa grande amizade, que vem de tão longe, devo creditar ao escritor Eduino de Jesus o privilégio de ter conhecido Fernando Aires, em maio de 2005, durante o lançamento do livro “Ponta Delgada Ficções”, do qual ele era um dos autores. Estava diante do fidalgo escritor , o homem da ilha, do cerco de vidas e das palavras amainadas ao sabor do vento e das marés. Olhos observadores, cheios de vivacidade, em meio a um sorriso que se abria no correr da breve conversa entabulada para além do “muito prazer” da apresentação formal acontecida pelas mãos do amigo Eduíno de Jesus, tal como ele, uma personalidade incontestável da literatura portuguesa.
Voltaria a encontrá-lo em outubro de 2009 em Ponta Delgada outra vez ao lado de Eduíno de Jesus e de outros amigos escritores como Daniel de Sá e Onésimo Teotónio de Almeida. Um grande abraço de reencontro, um retomar de conversa interrompida anos atrás e tanto mais para dizer em tão pouco tempo. Não disse. Ficou a palavra guardada. Ficou a lembrança do sorriso sereno e afável, o instante mágico captado na fotografia. Ficou uma imensa saudade cercada.
O tempo passou. Era uma vez o tempo…
“Se este tempo de adiamentos continua,creio que vou construir um barco e nele abrir uma vela do tamanho de meu desejo.Só espero que depois um vento propício me leve veloz e sem pesos de alma até à vista dos céus que procuro – um lugar onde não haja mais dias cinzentos e molhados,baços do apodrecimento da esperança e da vontade.” (Diário II,1990:134)
Lélia Pereira da Silva Nunes,
Florianópolis,Setembro de 2011