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A paisagem das Sete Cidades subjuga-lhe inteiramente o espírito, incitando à meditação: “Aqui nos encontramos connosco, nos recolhemos, dominadoramente, a inquietação humana.”. A terra lembra aspectos da suíça e da Holanda, numa nova aproximação com a realidade estrangeira já visitada, que documenta o conhecimento do mundo detido por este escritor-viajante.
A chegada à lagoa é descrita de forma quase mística e eivada de mistério: “A bruma, mui branca, cobre as montanhas que cercam as sete cidades, liga a terra ao céu e cada vez se eleva mais, em ondas preguiçosas, em grandes rolos de algodão em rama.”
Com efeito, o visionamento das lagoas é representado como um momento mágico, uma espécie de epifania: “Dir-se-á que se abriu uma cortina na terra e algo proibido, algo mui estranho, algo até agora inconcebível, fulgiu um instante e assombrou, para em seguida desaparecer dos nossos olhos extasiados.” (p. 299).
As personificações e as metáforas são recorrentes, através de um processo que ultrapassa a humanização da paisagem, para a mitificar ou divinizar:
“Tranquilas, pensativas, como se meditassem em quantas imagens recolheram desde o começo do Mundo, as Sete Cidades dormem nesta manhã já sem bruma, sob este sol radioso que aviva mais o verde e o azul dos seus deslumbrantes lagos. Um silêncio vibrátil vem de baixo, da flor da água adormecida, chega até nós, envolve-nos e continua a subir, magneticamente, para o céu.” (p. 299).
A sensação de irrealidade invade o narrador, impossibilitando-o quase de se sentir num local terreal, apesar das casitas brancas que “velam o sono dos lagos” irromperem na sua presença de humanidade.
Evidenciando a preocupação em analisar também a realidade social, o autor salienta o facto de, naquela época (anos 30), S. Miguel ser um destino pouco conhecido dos estrangeiros e dos portugueses continentais, ao contrário, da Madeira que já usufruía, na altura, de receita significativa com o turismo. Além disso, foca ainda a influência dos emigrantes regressados na América, nos hábitos de vida dos micaelenses, embora não tenham mudado a alma insular.
São sublinhadas as tradições espirituais e os costumes e o carácter do micaelense “homem de alma lírica, generoso e tolerante, não despreza as conquistas da ciência, nem as vantagens do progresso; mas resiste, geralmente, a todas as ideias contrárias aos princípios em que foi criado (…)” (302)
Posteriormente, constatamos que, se S. Miguel é a ilha verde, como a Irlanda, a Terceira é a ilha histórica. Isto porque, de seguida, é enfatizada a vertente histórica de Angra do Heroísmo, onde se “sente a herança do tempo, o peso dos séculos mortos.”
O carácter dos terceirenses também é analisado pelo autor, numa ânsia de desvendar a realidade humana, concebendo-a em inter-relação com o espaço, ao evocar factos históricos que a envolveram. Por isso, na sua opinião:
“Recorda-se a Terceira sobretudo pela sua personalidade, uma personalidade forte, que não se sabe se vem do homem, se da terra, se do conjunto; uma personalidade que se faz sentir mal desembarcamos, que se faz sentir até que partimos e mesmo depois de partirmos, quando se evoca a ilha como um vulto cinzento, com uma nuvem branca em cima, perdido na linha do horizonte.” (p. 308)
Seguidamente, há referência à Graciosa, particularmente à vila de Santa Cruz, sendo salientada a angústia inerente à insularidade, proveniente do isolamento pelo mar.
Depois, ao partir desta ilha, vislumbra “o mais cenográfico grupo de ilhas do arquipélago. À esquerda S. Jorge; em frente, o Pico; à direita, o Faial.”
A cada uma das ilhas vai o viajante concedendo a sua atenção especial, enquanto lhe delineia os traços paisagísticos e tenta desvendar-lhes a alma. Assim, “O Pico com a sua névoa divagante, ora branca, ora cromática, torna-se uma visão quimérica.” (p. 310).
Das três ilhas é a S. Jorge que chega primeiro e destaca a vila das Velas:
“A sua vila das Velas medita atrás de um negro esporão da terra, quase cortado a prumo sobre o mar. Enquanto algumas das brancas casitas se aninham à beira da água, outras, desejosas de espairecer, encarrapitam-se na ribanceira a que o burgo se encosta. (…). Os queijos ocupam e a manteiga desempenham aqui o lugar que o ananás ocupa em S. Miguel.” (p.310).
Novamente, Ferreira de Castro espelha o seu interesse em abordar não apenas os aspectos da paisagem que o maravilham, mas fornecendo também informações sobre o modus vivendi das populações e a economia. Além disso, a cultura também não fica esquecida, através da evocação do notável musicólogo, compositor e maestro Francisco de Lacerda (1869-1934), oriundo de S.Jorge (“Percorremos S. Jorge até às Urzelinas, onde nasceu Francisco de Lacerda (1869-1934), mago dos ritmos.” (p.310)”).
Por seu turno, o Pico é caracterizado por ” uma beleza desgrenhada, diferente das outras ilhas”, enquanto que o Faial é considerado de um esplendor empolgante.
O Corvo e as Flores são consideradas “ilhas deserdadas”, mas é descrita sobretudo a vegetação.
Este périplo termina precisamente nas Flores, conotada com um “princípio do mundo”, uma espécie de espaço primordial: “Estamos, agora, no extremo do arquipélago e dir-se-á que estamos no extremo do Mundo. Mas não. (…) Se das Flores olharmos para o mar (…) parece-nos que o Mundo só começa ali, porque o Mundo para a ansiedade humana, só começa na linha do horizonte, sempre para além da linha do horizonte, sem atingir, jamais, o seu fim – jamais, jamais…” (p.311).
Em suma, é não apenas através do olhar, mas convocando todos os outros sentidos, e, sobretudo, o coração que Ferreira de Castro esboça estas “aguarelas” do arquipélago dos Açores. Pinturas tecidas de palavras, onde os espaços são dotados de alma (espelho da sede humanista do autor), reveladoras do deslumbramento provocado por momentos tecidos de magia, como se pertencessem verdadeiramente a um outro mundo, etéreo, diáfano e primordial.
Dora Gago
Nota: As citações pertencem a: Castro, Ferreira, Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, 5.ª edição, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1955.
[1] Versão revista, abreviada e modificada do artigo intitulado “Tempestades na terra, no mar e na alma em Vitorino Nemésio e Jorge de Sena”, publicado na Revista Desenredos, Janeiro de 2012, em: http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/12-artigo-DoraGago-tempestades.pdf
Dora Nunes Gago é professora, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, investigadora de pós-doutoramento da FCT, na Universidade de Aveiro. Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de doutoramento), Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias. Tem apresentado igualmente diversas comunicações em Congressos Internacionais em Portugal e no estrangeiro.