Memorandum João-Luís de Medeiros
… pela minha parte, sigo os meus des(a)tinos da escrita missionária a imitar a ‘genica’ étnica da nossa diáspora lusófona. Mas reconheço que o delírio que aposta no comando do quotidiano nem sempre entende o fervor poético do bem-comum. Nada de sustos!
Felizmente, lidar com madre República lusíada não oferece perigo na próxima esquina; ela conhece de cor as nossas debilidades; em condições normais, ela está ao nosso lado para ajudar a sumir distâncias e a evaporar saudades “entre as brumas da memória”…
Imagino que a geração mais jovem não se recorda do chamado”portuguese thanksgiving” revolucionário, de 25 de Novembro de 1975. A meu ver, trata-se de um episódio ímpar do pseudo-anarquismo pós-25 de Abril: naquela data, como é sabido, o radicalismo frentista da Esquerda foi “posto” na ordem, graças aos valorosos militares e civis que tiveram a coragem patriótica e a determinação cívica de consolidar o pluralismo democrático. Naquela já longínqua semana de Novembro de 1975, aconteceu estar ausente do país, por que fora convidado pelo Partido Democrata Sueco para conversar publicamente da revolução portuguesa, num país considerado modelo da social-democracia, onde em cada dez expressões pronunciadas, uma delas era a palavra mágica ‘organisation’ (organização). Na época referida, segui integrado num quarteto de jovens dirigentes socialistas, entre eles o engenheiro Martins Goulart (actualmente no desempenho de funções politico-culturais junto da embaixada de Portugal, em Washington, D.C.). Para mim, como aprendiz da vida (que sempre me acenou através da muralha-gaiteira da ilha) foi deveras uma jornada muito gratificante, apesar das notícias enviesadas que iam pingando em Estocolmo, a propósito do borbulhar do 25 de Novembro.
Hoje, sabemos que valeu a pena esperar… pela carta-de-amor da revolução – a Constituição da III República. Naquele tempo, passou ser moda “brincar aos 25”: primeiro, fora o 25 de Outubro de 1925, a data do colapso do sistema capitalista norte-americano (por sinal, a data em que Karl Marx faria anos, caso estivesse vivo); depois, o glorioso 25 de Abril lusitano, mais tarde admoestado pelo 25 de Novembro de 1975 – a evolução na revolução! …/…/…
Ora cerca de dez anos antes da queda do muro de Berlim, foi-me dada a oportunidade de visitar a antiga RDA (República Democrática Alemã). Estávamos no Outono de1979. Embora ciente de que Berlim Oriental era a vitrina de recurso para a propaganda ideológica, na época não podia supor que dez anos mais tarde (Novembro 4, 1989) cerca de 700.000 pessoas haviam de abreviar a queda do chamado “comunismo em passo de ganso prussiano” (aliás, cinco dias mais tarde, o muro era, finalmente, escangalhado…). Ainda recordo a visita de estudo feita ao tristemente famoso campo de concentração em Ravensbruck, especialmente desenhado para albergar mulheres, pois foi ali que aconteceram as cruéis experiências ditas médico-científicas que os relatórios confirmam. Por ali passaram centenas de milhares de mulheres (judias, cristãs, agnósticas, etc.) entre elas Olga Benário Prestes, esposa do líder comunista brasileiro Carlos Prestes (uma breve nota de roda-pé para recordar que o casal Prestes foi muito mal tratado pelo ditator brasileiro Getúlio Vargas). Recordo ainda que o pequeno grupo de visitantes (no meu caso, observador tímido, mas tacticamente curioso do estilo da administração municipal de Berlim Oriental) antes de recolher ao Hotel Warnow (Rostock) foi obsequiado com um convívio agradável a bordo dum barco de recreio. No selecto passeio fluvial pelo “Spree Forest” já se falava do estilo populista do novo papa João Paulo II, e da plausível hipótese reaganiana como sheriff americano…
Na altura, porventura confiado no meu modesto “home-work”, ainda ousei gaguejar alguns comentários àcerca de escritores alemães da moda, como Christa Wolf ou mesmo Heiner Muller… mas tive de aceitar depressa o prudente aviso da nossa guia-intérprete brasileira que (na sua linguagem amorenada) me segredou que Muller era tido como agente cultural da Stasi (sinistra organização policial que, na época, disponha de 274.000 indivíduos nas suas fileiras).
Relativamente ao agora defunto muro de Berlim, que na altura me foi descrito por um funcionário da municipalidade berlinense como “uma das sete maravilhas ideológicas do mundo”, lamento referir que há ainda muita vontade de erguer novas muralhas neste nosso (cada vez mais globalizado) planeta. Estou agora mesmo a recitar mentalmente o famoso poema “Mending Wall”, do enorme Robert Frost. Alegra-me imaginar que os muros de castidade ideológica estão a perder a sua eficácia. Mas há ainda muita vontade reprimida para imitar as novas “Muralhas da China” do capitalismo selvagem. É urgente reeducar, civicamente, os trompetistas do sensacionalismo, que se rebolam por aí a ecoar a voz dos donos… Como ainda estamos em Novembro, se bem me lembro, temos de ser prudentes na ousadia, sem inchaços de pregações catedráticas; sobretudo, inteligentes na superação das ofensas de percurso… que são meras escaramuças folhetineiras dos noveleiros do ciúme – gente fidelíssima ao culto tribal da incompetência simpática, gente conhecedora de que “os bolos não se comem uns aos outros”…
(inédito)
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Rancho Mirage, California
Novembro / 2010