Em Angra, no Verão anterior, também tivera encontro pouco auspicioso com motorista. Foi ali mesmo no Alto das Covas. Era para ir a Santa Luzia, buscar a minha tia, senhora de oitenta anos. Sim, compreendia que era ali mesmo, que não era grande frete, mas enfim… estava disposto a pagar bem, prometia boa gorjeta. Fez-me sair do carro com a minha mulher, onde já nos tínhamos instalado. Esquecera-se que tinha, dentro de uns minutos apenas, outro frete prometido. Fiz-lhe ver que não era justo, que sabia que ele estava a ser grosseiro porque Santa Luzia era ali mesmo; mas que, por isso mesmo, eu lhe prometera generoso frete, generosa gorjeta. Ficou malcriado, chamando-me a mim malcriado. E tive o cuidado de desapegar dali para fora, não fosse aquele valente terceirense demonstrar as suas aptidões pugilistas para com este ilustre professor catedrático, que em artes marciais não é lá grande coisa. Virei-lhe as costas e apanhei outro táxi um quarteirão mais abaixo – que se mostrou encantado com a promessa duns generosos dez euros pelo frete, com mais cinco de gorjeta – um frete de menos de dois quilómetros.
Ao nosso motorista alfacinha não estava seguro se devia, ou não, fazer-lhe qualquer pergunta. Até porque o homem não nos dava a oportunidade de falarmos, de abrirmos sequer a boca. Pôs-se a discorrer sobre o mal que estava a vida naquela porcaria de país, que devia ter emigrado quando era tempo de o fazer. (Aproveitei para lhe dizer que também na emigração há fretes amargos… mas nem me ouviu.) Disse então das suas amarguras na sua terra. Tinha ordenhado as vacas do seu pai, lá na Beira, perto de Trás-os-Montes…. (Aproveitei para lhe dizer que eu também tinha ordenhado milhares de vacas na Califórnia e que essas nem eram do meu pai… mas não me ouviu). Tinha trabalhado umas terrinhas de enxada. (Aproveitei para lhe dizer que também tinha cavado terrinhas com enxada antes de emigrar para a América…, mas nem me ouviu.) Os filhos, e os filhos, tinha filhos? Aí sim, respondeu: Eram uns pobretanas, que não só não o ajudavam, agora que ele já estava a ficar com a sua idade, mas ainda lhe pediam dinheiro para comprar roupas às esposas e limpar o ranho aos netos… Estava farto daquela cambada, devia ter emigrado, mas agora era tarde demais, pois até o dinheiro da América e do Canadá estava sem valer nada…. e o dinheiro de cá valia muito mas só para quem o tinha, e ele não o tinha, e com fretes daqueles não ia ter sequer para meter gasolina no carro…
Éramos os dois emigrantes, eu na América, a Irene no Canadá. E aquela moça que ali ia era dos Açores e estava aqui no continente a estudar… que também era um tipo de emigração. Que não estava certo…. que fôssemos para ali, para o volante e que ele, de boa vontade, se sentaria no assento de trás e quando chegássemos ao hotel que nos meteria, de bom grado, na mão aquele frete miserável com que nós fôssemos, se pudéssemos, meter gasolina no carro e comprar vestidos para as nossas noras e limpar o ranho aos nossos netos…
Graças aos santos, íamos mesmo a chegar ao hotel, o Hotel das Letras, ali na Castilho, fazendo esquina com a do Salitre, onde ficava a minha amiga e colega. Pois não era até da gente se rir? Até nós, que éramos portugueses, ficávamos num hotel espanhol! Não sabíamos que os espanhóis estavam a comprar tudo em Portugal? A Avenida já era deles. Esta vida era uma merda; o país ia todo pà merda. Agora eram os espanhóis que mandavam no país. Dali a pouco ele só teria táxi se os espanhóis deixassem. Mas raios o partissem se ele, um dia, farto daquela vida e daquele país da merda, não entrasse de táxi pelo Tejo dentro e não desse cabo de tudo… pronto!
Havíamos chegado à porta do Hotel das Letras. O meu, o Jorge V, ficava dali a um quarteirão. Mas eu desci também, agradecendo aos santos em que não creio o estarmos bem longe das margens do Tejo.
Paguei-lhe cinco euros a mais do que indicava o taxímetro. E meti-lhe mais cinco na mão – para descargo da consciência que tinha limpa, pois não imaginara que um frete de táxi pudesse ser tão amargo. Fiquei, porém, um bocado amargurado quando o amargo motorista – com cujas dificuldades económicas verdadeira e sinceramente empatizei – nem teve a gentileza de me dizer “Obrigado”. Simplesmente abalou dali para fora, espero que em direcção às Amoreiras – e não ao Tejo.
Francisco Cota Fagundes
Francisco Cota Fagundes é Professor Catedrático da Universidade de Massachusetts Amherst.