Gente da Minha Vida: Uma Mulher Marcante
Já há longos anos que escrevo sobre as nossas vivências comunitárias. Em meados da década de 1980, mais concretamente em 1984 comecei, com Pedro Valadão Costa e mais tarde com Fernando Valadão, uma publicação mensal, muito modesta, é certo, mas servia a nossa comunidade e chamava-se Novidade. Depois já no Tribuna comecei a publicar as minhas crónicas no década de 1990. Tenho tentado refletir a nossa comunidade de diversas formas, do ensino da língua portuguesa à preservação da nossa identidade cultural, da nossa participação no mundo que nos rodeia (ou à falta dessa participação) até à nossa criatividade literária em terras Californianas. Raramente falo de pessoas. Tenho tentado tratar mais a nossa coletividade e menos o aspeto pessoal. Porém tem sido uma falha. Ë que a comunidade é acima de tudo, as pessoas que compõem essa comunidade. Daí que e partir desta edição e com alguma regularidade, quero refletir algumas pessoas marcantes da nossa comunidade. Gente que marca a nossa comunidade e que, pessoalmente, me marcou.
Ao longo de 46 anos de vivências portuguesas em terras americanas, uma das pessoas da nossa comunidade que me marcou, tremendamente, foi e continua a ser a minha amiga Lúcia Noia. Conheço a Lúcia, pelo menos a sua voz, desde que cheguei aos Estados Unidos. Lembro-me de ser um dos primeiros programas de rádio que ouvi, uma espécie de prefácio, em casa dos meus falecidos tios, para o programa de rádio que seguia, Ecos do Vale de Joaquim e Amélia Morisson. Outro casal (amigos íntimos da Lúcia) que me marcou para sempre. Mas é da Lúcia que quero falar.
Com a Lúcia aprendi muito do que hoje sei (se bem que preciso aprender ainda muito mais, mas a culta não é dela) sobre a língua portuguesa. Na minha juventude, passada na escola e na ordenha das vacas, a Lúcia, como já referenciei em público, era, mesmo sem ela saber, a minha mentora da língua portuguesa. Nas madrugadas do Vale de San Joaquim, enquanto trabalhava na agropecuária com o meu pai, a Lúcia era a minha companhia. O seu programa de rádio em língua portuguesa era um oásis, num mundo que não era o meu. Falava português corretamente e, imaginem, às seis da manhã, lia poesia. Acompanhei sempre o seu programa de rádio, o Sol de Portugal, que pouco depois da revolução dos cravos, mudou para Portugal Novo. Não fosse a Lúcia uma mulher inteligente e progressista.
Com a passagem dos anos entrei eu na rádio de língua portuguesa e poucos anos mais tarde, por obrigações profissionais, ela saiu da rádio. Uma lacuna que nunca foi preenchida. Mesmo já com o meu programa de rádio, ouvi-a, religiosamente, e aprendia, muito mesmo.
A minha amiga Lúcia Noia, foi uma das profissionais mais dedicadas no campo dos serviços sociais e da saúde mental. Foi ainda, muitas vezes incompreendida pela comunidade, uma das pessoas que mais lutou pelos direitos dos emigrantes. Ainda me lembro como foi ostracizada quando tentou trazer para a nossa comunidade benefícios que outros grupos étnicos usufruíam e os quais nós tínhamos direito. Foi, infelizmente, assaltada pelos velhos do restelo de então, que não eram muito diferentes, dos velhos de restelo de hoje.
Ao longo das quatro décadas que conheço a Lúcia Noia, sempre, mas mesmo sempre, nutri por ela uma grande amizade e uma admiração incomensurável. O trabalho da Lúcia no campo da assistência social, na defesa dos mais marginais da nossa sociedade é inigualável. Se tal como escreveu Duane Hulse: ganhamos a vida pelo que recebemos, mas vivemos a vida pelo que damos, a minha amiga Lúcia Noia é exemplo claro e inequívoco de uma vida bem vivida. É que a Lúcia é dos seres humanos mais generosos que conheço. A sua generosidade é, como toda ela, uma generosidade inteligente. Ao longo dos últimos 40 anos tenho visto a Lúcia, inúmeras vesses, e de formas múltiplas, ajudar muita gente, anonimamente. É que a Lúcia não precisa de louros. Sem alaridos, sem dar nas vistas, mas com convicções fortes e um enorme sentido de justiça social, a Lúcia Noia marca presença na vida de muita gente. Contribui imenso para campanhas politicas, para o ensino, para causas humanitárias.
E vejamos apenas alguns dos seus atributos e dos seus triunfos. Foi locutora da rádio durante quase vinte anos. É coapresentadora (ela faz um domingo eu faço outro) do programa televisivo Os Portugueses no Vale (que este ano celebrará a suas bodas de prata). É uma mulher de negócio de sucesso tendo sido homenageada pelas mais variadas entidades públicas e privadas, sendo há meia dúzia de anos distinguida como a mulher do ano do condado de Fresno. Convém aqui referenciar que o condado de Fresno é o mais populoso do vale de San Joaquim. Uma nomeação que deve orgulhar todos quantos são de origem portuguesa. A primeira vez que uma mulher oriunda dos Açores recebe tal distinção neste condado e quiçá em muitos outros da Califórnia. A sua vocação de benemérita e mulher da cultura é por vezes despercebida na nossa comunidade e nos Açores, habituados que estamos a apregoar somente na nossa canada e a minha amiga Lúcia Noia, é uma mulher do mundo. Discreta, audaz, perspicaz, comprometida com causas da justiça social, da liberdade de expressão, dos direitos humanos, do direito que cada cidadão tem à saúde, ao ensino, a uma vida com dignidade e oportunidades.
Simone de Beauvoir disse algures que : é pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta. A Lúcia Noia é exemplo das palavras de Simone de Beauvoir. O seu trabalho, a sua capacidade, a sua sabedoria, fizeram-na uma mulher verdadeiramente independente, sem tabus, e sem preconceitos. Um exemplo para a nossa juventude. Um valor que Portugal e os Açores têm em terras americanas. Uma mulher que marcou a nossa comunidade e levou, com o seu trabalho, a sua visão e a sua paixão pela justiça social, o nome de Portugal aos patamares mais elevados da sociedade americana.
Como inábil aprendiz da vida, frase que Eugénio de Andrade repetia imensas vezes, tenho aprendido imenso com muitas pessoas dentro e dora das nossas comunidades. A minha amiga Lúcia Noia é uma delas. Tal como eu, muitos outros têm usufruído da sua intelectualidade, da sua erudição, do seu compromisso com causas justas, do seu afeição ao mundo da educação, da sua paixão pela ascensão de todos os seres humanos aos mais alto patamares da experiencia humana e do seu contagioso espírito jovem.
A minha amiga Lúcia Noia é o exemplo clássico da célebre frase de Virgínia Wolf: Como mulher eu não possuo país. Como mulher, o meu país é o mundo todo. E o mundo é bastante melhor graças a pessoas como a Lucia Noia.