O olhar do outro é aquele que vê o que não vemos, que ouve o que não ouvimos, que lê o que não lemos, que sente o que não sentimos e, sobretudo, que escreve o que não escrevemos.
Este prefácio não é um prefácio. É um convite a que demos mais atenção, que, aliás, ele faz por merecer, ao professor, tradutor e ensaísta Giovanni Ricciardi que, há várias décadas, na Itália, lê, estuda, pesquisa, traduz e divulga a literatura brasileira.
Pelo trabalho que lá desenvolve, que o leva a vir constantemente ao Brasil, onde já morou durante algum tempo, tem obtido diversos reconhecimentos, entre os quais o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) na categoria “melhor divulgador da literatura brasileira no exterior”.
Giovanni Ricciardi já publicou diversos livros e ensaios vindos deste seu trabalho. Neste volume, ele reúne escritores do Brasil meridional, alguns dos quais já falecidos, outros em franca atividade.
É interessante observar, por exemplo, a radical mudança na prosa de Lya Luft, escritora que hoje pontifica semanalmente na revista VEJA com textos absolutamente diversos dos densos romances com os quais consolidou seu nome em nossas letras, revelando uma versatilidade extraordinária, vale dizer, uma perícia no manejo da palavra, uma clara consciência de quem é o seu leitor em cada caso.
Tania Faillace, a quem conheci sempre brava e guerreira, no texto e fora dele, na militância, mais do que política, social, revelou desde a estréia com O 35* Ano de Inês um vigor raramente visto na prosa do Brasil meridional.
Enquanto as gaúchas Tania Faillace e Lya Luft seguiam esses percursos tão diferenciados, mas com apoio de um Estado que como poucos valoriza a literatura local, a catarinense Edla Van Steen trilhava outras sendas, juntando três ofícios numa carreira solo, com pouco ou nenhum apoio de Santa Catarina. Tem em seu passado – este patrimônio é insaqueável – uma impressionante carreira como atriz, como escritora e como organizadora de antologias diversas, destacando-se com vigor nos três domínios.
Já Armindo Trevisan, homem de vasta erudição, despe-se de seus saberes para fazer uma das melhores produções poéticas do Sul. Lembro com encantamento o dia em que recitou para mim, à beira de um copo de vinho, o poema A Esferográfica, que ele escrevia e reescrevia, sempre inconformado, até que obteve, entre as formas, a forma.
De Caio Fernando Abreu o que mais lembro é sua permanente angústia alegre. Angústia alegre é um oxímoro, mas era este o estado em que ele parecia estar sempre, quer no Rio Grande do Sul, onde o conheci, em São Paulo, para onde nos transferimos no começo da década de 80 e na Alemanha, quando integrava, na década seguinte, a delegação brasileira de escritores que foi à Feira de Frankfurt, por ser o Brasil o tema daquele ano: 1993!
Charles Kieffer. Este eu o conheci numa igreja de Três de Maio (RS), onde ambos falamos aquela noite sobre nossas experiências literárias. Foi ainda na década de 70. Ainda não tinha sido lançado pela Mercado Aberto, editora que o projetaria nacionalmente e onde depois ele trabalharia como editor, bem antes de ser indicado Secretário de Estado da Cultura, na gestão do governo Olívio Dutra. Seu percurso como romancista é admirável.
Luiz Antonio de Assis Brasil é um Flaubert dos pampas, empenhado em dar a seus textos uma aura verdadeiramente literária que, como sabemos, alcança em todos os romances. Trabalha a frase como um ourives, esculpe seus personagens com um cinzel que maneja como poucos.
Este é também o caso de Adolfo Boos Jr, um dos mais cuidadosos com a técnica do romance, com o seu lado artesanal, revelando em cada segmento de seus romances um cuidado exemplar naquilo que os profissionais de letras deram em denominar arquitetura da construção literária.
De Guido Wilmar Sassi e Salim Miguel, o que mais me chama a atenção é que eles foram de todos nós os primeiros a terem seus textos transpostos para o cinema. No caso de Salim Miguel, este pioneirismo se deu também com textos alheios. Não é muito lembrada a carreira de Salim Miguel como roteirista de cinema, adaptando textos de literatura brasileira. De tal modo agigantou-se sua obra, em narrativas curtas como em romances, que outras vertentes do seu trabalho como que são menos notadas, mas ele tem sido um eficiente, solidário e criativo administrador cultural, de que são exemplos sua atuação à frente da Editora da UFSC e e da Fundação Franklin Cascaes. Nos últimos anos arrebatou alguns dos mais importantes prêmios literários. E Guido Wilmar Sassi deixou-nos o que para mim é seu testamento literário: o romance A Geração do Deserto, que outro catarinense talentoso, o nosso Luchino Visconti, tal é o apuro de seus filmes, o cineasta Sylvio Back, adaptou para o cinema em A Guerra dos Pelados.
Semelhando trilhar seus caminhos à luz de Guido Wilmar Sassi, mas com estilo de todo original, temos o caso de Enéas Athanázio, autor de narrativas curtas inesquecíveis, muitas das quais reunidas em mais de uma centena de antologias, publicadas no Brasil e no exterior. Desde O Peão Negro, seu primeiro livro, publicado em 1973, evidenciava o primeiro passo de um autor que hoje já tem no seu vitae invejável cerca de cinquenta livros publicados.
Mário Quintana tornou-se uma tal unanimidade que seus versos tornaram-se, mais do que versos, ícones da poesia da vida cotidiana, poesia, aliás, que ele esparziu também sobre frases definitivas sobre os mais diversos temas.
Lindolfo Bell, poeta de extraordinária criatividade soube trazer das ruas temas e problemas, dando-lhes irrepreensíveis verossimilhanças, externa e interna, aliás poucas vezes vista na poesia brasileira. Não resisto e cito versos de seu poema Legado, já que ele nos deixou ainda no esplendor de sua criação: “Deixarei por herança/ não o poema/ mas o corpo repartido/ na viagem inconclusa./ Pois todo o poema maduro/ é um verde poema/
E, mesmo acabado,/ se estriba na inconclusão/ Claro, sem esquecer,o estratagema da paixão”.
Sinval Medina é outras destas referências indispensáveis. Seu talento está comprovado em muitos livros, mas especialmente em Herdeiros das Sombras e Memorial de Santa Cruz. E foi no Rio Grande do Sul, em Passo Fundo, que arrebatou um dos maiores prêmios literários nacionais, feito aliás obtido também por Salim Miguel, o Prêmio Passo Fundo de Literatura Brasileira.
Domingos Pellegrini, no conto como no romance, apresenta uma prosa perigosamente ligada à terra e ao homem. Sempre apreciei muito este lado telúrico de sua ficção e, especialmente, estas ligações perigosas com as quais ele vincula seus personagens a seu tempo e a seu terrum, com uma versatilidade impressionante, especialmente nas narrativas curtas.
Harry Laus partiu em 1992. Em 1958, saudando no jornal O Globo os grandes lançamentos daquele ano no Brasil, o escritor e crítico Antonio Olinto dizia que entre os autores dos melhores livros do ano estavam Jorge Amado, com Gabriela Cravo e Canela, Lígia Fagundes Telles, com Histórias do desencontro, e Harry Laus com Os Inocentes. É preciso dizer mais?
Como nos lembra o artista plástico e poeta Hugo Mund, em Tempo, “Voa o tempo que nos faz./ Quando feitos, acabamos/ para o brilho. É a luz/ que, por dentro, nos refaz”. Ou, como lembrou em Apogeu, “Há um itinerário que te afasta do sonho,/ a deslumbrante certeza do próprio instante./ Sobra-te a dignidade, algo muito próximo/ do grito que configura o desespero./ Os dons da vida não se ajustam à permanência,/ nenhuma destreza impede que o regozijo acabe”.
Fecho esta apresentação com meus votos de qu
e este livro seja lido e divulgado, para que outros possam auferir os altos benefícios que são trazidos até nós por um italiano que soube ver com sagacidade e sabedoria esta parte do Brasil, que tanto deve aos imigrantes, principalmente europeus, mas também a outros, de outras etnias.
De mim, o último desses escritores, não digo nada. Não apenas porque “elogio em boca própria é vitupério”, como nos ensina Camões, mas porque, não sendo masoquista profissional, se não tivesse apreço nenhum por meus livros, não os deveria ter escrito. O importante é que outros aprovem ou desaprovem, repartidos, mas que não nos deixem cair na tentação que abominamos, a de não sermos lidos. Este, sim, é um destino que escritor algum quer para os livros, dele ou de outros autores.
Giovanni Ricciardi fez, mais do que um ensaio, um monumento à literatura desta parte do Brasil. Com uma diferença sutil: suas estátuas falam! Com a calma de seu fazer e da carinhosa atenção que tem para com todos, foi mostrando, peça por peça, como é que o escritor se viu neste percurso.