“Graciosa, terra de pianos”
Victor Rui Dores
A Graciosa sempre marcou a diferença por uma fortíssima tradição pianística. A abundância de pianos, naquela ilha, era de tal maneira que, em 1940, Hipólito Raposo, degredado na ilha branca por motivos políticos, haveria de escrever, no seu livro Descobrindo Ilhas Descobertas (Lisboa, 1942), que a Graciosa possuía "mais pianos do que máquinas de costura". E isto numa altura em que uma máquina de costura era um bem de primeiríssima necessidade.
Mas comecemos pelo princípio e, no princípio, era o vinho.
Em 1589 Jorge de Cumberland relatava que, na Graciosa, havia mais vinho do que água… Com efeito, a produção de vinho foi, até final do século XIX, a maior fonte de riqueza daquela ilha. Todo este período de prosperidade económica permitiu, à elite terratenente graciosense, um franco desafogo financeiro. Tratava-se de uma elite latifundiária, composta sobretudo por morgados e gente abastada que, por razões familiares ou profissionais, saía da ilha com frequência, contactando com as modas em vigor em Angra do Heroísmo, Horta, Ponta Delgada ou Lisboa.
São os morgados que trazem os primeiros pianos para a Graciosa. Nos finais do século XIX verifica-se uma segunda vaga de pianos na ilha, desta feita suportada economicamente pela burguesia investida na caça à baleia, na indústria da telha, na produção de cereais, havendo ainda a considerar o regresso à ilha de vários emigrantes do Brasil, trazendo hábitos, modas e influências a vários níveis, incluindo as musicais.
Estes pianos foram fazendo parte de uma herança familiar atravessando os tempos e as gerações. O gosto por este instrumento nunca deixou de ser cultivado na Graciosa, chegando a haver uma média de 1 piano por cada 50 habitantes. Cada família, pertencente à classe remediada, tinha o seu piano. E não só. Faz parte do imaginário graciosense aquela história de um pai que abdicou do seu meio de transporte privilegiado – o burro – para garantir a compra de um piano à filha…
Hoje andará por volta da centena os pianos existentes na Graciosa, o que, para uma população que não ultrapassa os 4.000 habitantes,não deixa de ser uma média impressionante. É certo que, nos tempos que correm, mais de metade desses pianos servem apenas de décor às salas, mas o que é facto é que eles estão lá – testemunhando uma grande tradição musical.
Noutros tempos, o piano servia essencialmente o gosto musical feminino e, por isso mesmo, era maioritariamente tocado por raparigas, educadas para o recato, para os lavores e para as boas maneiras. Saber tocar piano era uma mais-valia, pois era marca de distinção social e potenciava muitas formas de convívio. Sei do que falo, pois a minha mãe dava lições particulares de piano às meninas prendadas da vila de Santa Cruz da Graciosa. Cresci a ouvir o piano lá de casa a ser matraqueado todo o santo dia… E ainda sou do tempo em que, nas sociedades recreativas, um só piano (tocado pelo incontornável José Berto) bastava para que acontecesse um baile. E muito dancei eu ao som da valsa, do tango, da canção, da polka, do foxtrot, do paso-doble, da marcha e do charleston…
Os bailes, públicos ou privados, eram propícios à integração social e fomentavam os namoricos, mediante vasto repertório e numa altura em que a indústria do piano vivia o seu auge na América e na Europa. Isto é, dançar era então um pretexto e uma oportunidade única para os pares se tocarem e agarrarem, funcionando a dança como uma espécie de prelúdio amoroso. E esta prática manteve-se entre nós durante muito tempo, diria que pelo menos até aos tempos da minha adolescência terceirense (como esquecer a fogosidade dos slows nos bailes do Liceu?…).
Não acabarei hoje o dia sem tocar, ao piano, o "Danúbio Azul".
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Nota: publicado originalmente na edição de 2 de setembro no jornal Diário Insular.