Sombras da vida
A cidade enrosca-se timidamente
na noite de breu
enquanto pelo ar adejam, subtilmente,
as sombras fantásticas do medo.
Algures numa taberna de má nota,
um pintor, boémio e sonhador,
desenha no espaço, com a ponta do cigarro,
os delicados traços da vida.
Seu pensamento é uma bolha de fumo
que se espirala no ar.
Seu pensamento é uma bolha de nada
que procura em vão expandir-se
para além do sórdido recinto
e fica apenas pairando, molemente,
sobre um montão de garrafas.
No outro extremo da rua uma fera
com feições humanas galga a quatro e quatro
os íngremes degraus que conduzem
à mais cega e descomunal loucura – o suicídio.
Um carro freia bruscamente…É mais um
que chegou ao final de mais uma etapa,
talvez a última.
Outro acelera furiosamente.
É mais um que inicia a longa e penosa
jornada da vida. Mais um sonho
que se evapora no ar
a par do esperançoso roncar de um carro
que a distância reduziu a um ponto negro.
Num quarto cor de rosa
entalado entre as quatro paredes
de uma maternidade uma criança
abre pela primeira vez os meigos olhos
e fita, transida de horror,
a face oculta da vida… e chora,
chora desconsoladamente.
A noite escura e feia não tem mais fim.
No ar continuam adejando, subtilmente,
as sombras fantásticas do medo.
E o vento, o vento é um cachorro
que ulula lugubremente pelos ermos.
Heitor Aghá Silva, Pedra de toque, Horta, ed. do Autor, [1992].
Heitor Aghá Silva é nome literário de Heitor Humberto da Silva, (1954), bancário, poeta, ensaísta, é natural da cidade da Horta, ilha do Faial, onde reside e trabalha.