HERCULANO E OS AÇORES
Eduíno de Jesus
Herculano desembarcou na ilha Terceira no dia 18 de Março de 1832, de onde depois embarcou para S. Miguel no dia 6 de Abril seguinte e desta ilha para o Continente a 27 de Junho do mesmo ano. Feitas as contas, dá para a assistência do futuro escritor nos Açores um total de 100 dias á justa, dos quais 18 na Terceira e 82 em S. Miguel.
Isto é quase tudo o que se pode dizer sobre Herculano e os Açores. De facto, ele nunca mais voltou às ilhas depois daqueles 100 dias e nunca se ocupou delas na sua obra literária nem nos seus trabalhos políticos ou históricos.
Nunca se ocupou delas propriamente como tema literário nem como assunto político ou histórico, mas, em todo o caso, nomeou-as ou fez-lhes alusão ocasionalmente, em abstracto. Há, com efeito, breves referências suas, de circunstância – pouquíssimas, aliás -, uma à Terceira, mencionando-a por “rochedo da salvação”; outra genericamente ao Arquipélago, recordando as “tristes saudades” que curtiu assentado “sobre os outeiros vulcânicos dos Açores” (teria em mente talvez S. Miguel, em que a vulcanidade é mais patente); e ainda, um pouco mais extensamente, a “uma ilha arremessada / às solidões do mar”, que (se dos Açores se trata, como parece) tanto pode ser a Terceira como S. Miguel, com mais probabilidade, porém, esta segunda, onde os “vestígios de vulcões” a que se refere lhe terão chamado mais a atenção.
Ainda assim, vejamos um pouco mais de perto aqueles 100 dias açorianos do futuro escritor; ou melhor: vejamo-lo a ele mesmo mais de perto nessa altura…
Quem era,. afinal, esse moço Herculano que desembarcou na Terra Chã, ilha Terceira, no dia 18 de Março de 1832?
De onde e ao que vinha? O que fez e o que lhe fizeram por lá?
Seu nome, por extenso, era Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo.
De uma família pequeno-burguesa com antecedentes batante humildes.
Tinha, de idade, apenas 21 para 22 anos (completaria os 22 dez dias após o desembarque na Terceira, em 28 de Março). e vinha de Belle-Isle-en-Mer integrado numa divisão de emigrados políticos portugueses com destino à Ilha Terceira. Esta ilha, na altura – mais propriamente a cidade de Angra –, era a sede do Conselho de Regência Liberal do Reino, nomeado em 1830 pelo príncipe D. Pedro de Bragança, ex-Rei D. Pedro IV, agora Regente do Reino em nome de sua filha D. Maria II. O Rei de França Luis Filipe I tinha-lhe disponibilizado Belle-Isle para ali se poderem concentrar os portugueses emigrados por causa da sua oposição ao regime absolutista implatado em Portugal por D. Miguel I, aclamado Rei em Cortes em 1828 contra os direitos. da jovem rainha D. Maria II, sua sobrinha, apoiada pelos liberais. Estes emigrados, procedentes todos, ou na sua maioria, da Inglaterra e de outros pontos de França, destinar-se-iam a integrar uma projectada expedição liberal a partir dos Açores com o objectivo de libertar Portugal daquele regime.
Herculano vinha, pois, de Belle-Isle, para onde tinha ido de Rennes, aonde chegara procedente de Plymouth, Inglaterra, e se demorara algum tempo. A Plymouth tinha ido parar em 1831, fugido à forca, pode-se dizer, por, em Lisboa, em que nascera e vivia , se ter envolvido, moço de 20 anos, na conspiração que preparara a revolta do regimento de Infantaria 4 contra o regime absolutista imposto por.D. Miguel.
Chegara à Terceira antes da Primavera três dias, depois de uma longa viagem começada dezassete dias antes, em 29 de Fevereiro. Vinha mal enjorcado num capote da tropa por cima do seu traje civil (os uniformes comprados em França e distribuídos a bordo não chegaram para todos; a alguns voluntários coube apenas uma parte, pelo que vinham, muitos deles, Herculano inclusive, grotescamente trajados. Não seria, pois , boa a.aparência do futuro escritor, assim vestido meio à civil, meio à militar, e talvez mal encarado, como parece que era, de resto, o seu natural. Ninguém deve ter dado por ele.
Não aconteceu o mesmo com outro emigrado – já então personalidade emérita – que também vinha de Belle-Isle incorporado na mesma divisão com destino à Terceira. Essoutro rejeitara simplesmente tal “vestimenta” – aqueles “trajos de palhaço”, como chamara à farda que lhe tinham distribuído a bordo -, e podeis imaginar com que repugnância o fizera, quando vos disserque se tratava de Almeida Garrett. Exactamente esse, o dândi e já então famoso poeta, tão presumido da sua elegância como da sua obra. Ao tempo, era já autor de alguns dos marcos da nova ordem poética — o Romantismo – de que foi fundador: os poemas Camões, Dona Branca e Adozinda, todos publicado na segunda metade da décade da 20.
Os dois, Garrett e Herculano, tinham travado relações em Belle-Isle, como emigrados políticos e intelectuais que eram ambos. Garrett tinha mais cerca de 11 anos do que Herculano e uma formatura em Direito por Coimbra que Hrculano não conseguira por falta de meios; além disso, aspirava a uma nobilitação (que veio a conseguir mais tarde, de visconde, como se sabe) e, claro, vivia na alta-roda social e literária. Como se havia relacionado com aquele pobre moço, ainda anónimo, mal chegado à maioridade civil?
Bem, aquele pobre moço, não obstante não possuir fortuna nem estudos superiores oficiais, nem ter ainda obra publicada, já era alguém.. Estudos tinha apenas feito as Humanidades na Congregação do Oratório, onde também estudara Lógica e a Bíblia, e frequentara a Aula do Comércio , e estudara Diplomática na Torre do Tombo, e aprendera inglês e alemão, e se iniciara na leitura de Schiller, que tentara traduzir, Klopstock, Chateaubriand, etc.. Andava ainda pelos 18 anos e já se tornara aceito em círculos literários selectos, como a tertúlia do Morgado de Assentis e o salão da Marquesa de Alorna, um e outro ainda acentuadamente arcádicos mas em que já se pressentia a sensibilidade romântica que andava no ar.
Em Rennes, na França, tinha frequentado assidua e avidamente a respectiva Biblioteca pública e se municiado da grande literatura francesa do momento (Hugo, etc.) que algo o enriquecera, abrindo-lhe vistas para o Romantismo, que era o horizonte da nova Literatura, de que ele ia ficar sendo, com Garrett e Castilho, um dos pilares em Portugal.
EDUÍNO DE JESUS
(Texto inédito, Maio 2010)
Eduíno de Jesus nasceu nos Arrifes, S. Miguel, Açores (1928). Concluídos os estudos secundários deixou os Açores e instalou-se primeiramente em Coimbra e depois em Lisboa, onde reside actualmente. No continente, Eduíno foi professor do ensino primário e secundário, docente na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Eduíno faz parte do conselho de Directores da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo e é colaborador da enciclopédia de literatura Biblos e do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses do Instituto Português do Livro e da Leitura, e do Grande Dicionário Enciclopédico Ediclube (na parte do Léxico). Publicou três livros de poesia: Caminho para o Desconhecido (1952); O Rei Lua (1955); A Cidade Destruída durante o Eclipse (1957) e em 2005 a Imprensa Naciona -Casa da Moeda, editou o livro Os Silos do Silêncio, reedição selecta e refundida destas três colectâneas poéticas. Também publicou a peça de teatro Cinco Minutos e o Destino (1959). Tem centenas de artigos dispersos em revistas e suplementos culturais. Diz-nos Onésimo Almeida (posfácio Os Silos do Silêncio) que ” Se não existe uma história da Literatura açoriana, Eduíno de Jesus escreveu para ela alguns capítulos fundamentais em prefácios ou posfácios (verdadeiros estudos para livros dos poetas açoriano António Moreno, Pe José Jacinto Botelho), Armando Côrtes-Rodrigues, Virgílio de Oliveira e Madalena Férin” (p. 355).