Luiz Fagundes Duarte
Herdeiros entristecidos
O poeta Ahmed Ben Kassin passou a integrar o cânone dos escritores açorianos. Em certas coisas, até faz lembrar um outro escritor, açoriano de S. Miguel, chamado Daniel de Sá – que há pouco tempo, quase sem avisar, fez a trouxa e zarpou.
Ahmed Ben Kassin é o nome de um suposto poeta árabe de Granada, nos tempos em que a Península Ibérica era um mosaico de pequenos reinos – uns cristãos, outros mouros, outros assim-e-assim – em que floresciam poetas, matemáticos, arquitectos, cientistas em geral, todos fruto da interligação das civilizações mediterrânicas que nos deixaram algumas das obras que enformam a nossa identidade ibérica, portuguesa, e agora, pelas mãos de Daniel de Sá, açoriana.
Ahmed Ben Kassin é uma invenção de Daniel de Sá – e é uma nova estrela do firmamento da literatura portuguesa feita nos Açores: autor de um único livro, As Rosas de Granada, é a mais promissora esperança da poesia nos Açores. E é-o, porque abre caminhos novos, escancara janelas para o mundo, e vem provar, nos seus gestos de intemporalidade e de inespacialidade, que os Açores, mais do que ilhas isoladas do mundo e perdidas no tempo, são portos de passagem aonde chegam novidades do mundo e de onde partem novidades para o mundo. Como me parece acontecer com este livro, que se inscreve no ambiente lírico ibérico do Sul que também produziu as Cantigas de Amigo, rebentos bem formados de uma matriz que trazia em si os genes da poesia hispano-árabe que misturava, numa harmonia perfeita, três línguas mediterrânicas – o hebraico, o árabe e o romance, mãe natural das actuais línguas românicas do Sul. Refiro-me às kharjas, pequenas composições poéticas de inspiração popular com palavras ou frases em romance, que ocorriam no final de poemas mais longos e cultos escritos em hebraico ou em árabe – as línguas eruditas da época –, conhecidos por muwashah, e das quais encontramos, no derradeiro livro de Daniel de Sá, ecos escondidos da enorme humildade de que só homens de grande cultura como ele são capazes.
Daniel Ahmed Ben Kassin de Sá é um poeta total e sintético, que faz ocorrer, no seu livro único, passagens que lembram a grande poesia do Rei Salomão do Cântico dos Cânticos; entrever, como em “Na Queda de Granada”, a musicalidade andaluza de Federico García Llorca; e entressentir, em “Boabdil chorando os filhos prisioneiros”, o desencanto de Jorge de Sena na “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”.
Mais do que um pequeno livro de um poeta açoriano, As Rosas de Granada é um grande livro de um excelente poeta português de inspiração mediterrânica – ou seja, universal, porque foi daquela bacia de civilizações que partiram, passando também pelos Açores, os saberes e as ideias que viriam a construir aquilo que hoje entendemos como a civilização ocidental e que a globalização iniciada pelos Portugueses nos séculos XV-XVI viria a transformar em civilização universal. Por isso, doravante, este livro faz parte da corrente que enforma – e que assim prende e também liberta – a nossa identidade cultural.
É um livro demasiado grande para a nossa pequenez.
Porque, por ele, Daniel de Sá ensina-nos de onde viemos. A partir dele, os açorianos ficam a saber que há mais mundos para além dos nossos horizontes. E enfim, com ele, tudo o que já se disse e escreveu sobre o que seja literatura açoriana terá que ser, irremediavelmente, repensado, reescrito – e reinterpretado.
Quando a Ahmed Ben Kassin, somos nós – herdeiros entristecidos de civilizações perdidas.
Luiz Fagundes Duarte, natural da Ilha Terceira, Açores, é professor catedrático pela Universidade Nova de Lisboa, e Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura, Governo dos Açores.