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Teresa Veiga
História da Bela Fria
(1992)
Começo por uma citação de Jorge Luís Borges (“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, 1944: 26-27) que me parece interessante:
“El sustantivo se forma por acumulación de adjetivos. […] Hay objectos compuestos de dos términos, uno de carácter visual y otro auditivo: el color del naciente y el remoto grito de un pájaro. Los hay de muchos: el sol y el agua contra el pecho del nadador, el vago rosa trémulo que se ve con los ojos cerrados, la sensación de quien se deja llevar por un río y también por el sueño. Esos objetos de segundo grado pueden combinarse con otros; el processo mediante ciertas abreviaturas, es practicamente infinito. Hay poemas famosos compuestos de una sola enorme palabra.”
Neste mundo ficcional criado por Borges, a conceptualização da relação entre língua, fala e escrita é reinventada, por forma a poder dizer a nova realidade. Estamos perante uma mudança de paradigma criativo que, não sendo exclusivo deste autor, sintetiza e pré-anuncia novas estratégias da criação literária. É o paradigma do adjectivo, abandonado que está o do nome.
O conto “História da Bela Fria” tem no seu título esse carácter lúdico ambíguo, que Borges não diz, mas Eça de Queirós afirma na sua obra; isto é, essa importância da ambiguidade que o adjectivo traz ao sintagma nominal, na medida em que, no traço intervalar que lhe é atribuído, se situa o tempo da suscitação de emoções. É claro que se supõe como condição primeira que o texto, neste caso a ficção, parta sempre do pressuposto dessa relação erotizada entre a voz narrativa e o olhar ou o tacto do leitor.
Em “HBF“ a contiguidade sintática entre o determinativo “história de” e os adjectivos descritivos “bela” e “fria” tem como consequência primeira a nomeação de uma “Bela” que é descrita como “fria.” A dedução é a de que se vai ler a história de uma mulher bela e fria, talvez uma narrativa entre conto de fadas e thriller. Um pouco mais de informação da contracapa identifica o referente de “Bela Fria.” Afinal, este texto é sobre a história de uma quinta chamada Bela Fria. Mas o leitor, já seduzido por esta escrita regressa à ideia de que a quinta só por algum motivo desconcertante se deve chamar “Quinta da Bela Fria.” É então que o adjectivo “fria” adquire o lugar de destaque na definição deste espaço estranho; ou seja, os valores conotativos associados a “fria” serão pistas premonitórias de alguma desgraça?
Aparentemente, o conto é uma história de infância, em que se descreverá uma relação desencontrada entre mãe e filha. No entanto, este pretexto e o tom memorialista servem para uma narradora se ir definindo numa escrita límpida, simultaneamente culta e coloquial, em busca de efeitos de surpresa e desconcerto junto do leitor. A escolha de vocábulos eruditos a par da sintaxe formal surpreende, num tempo que é posterior ao de O que diz Molero ou ao do Discurso sobre o filho-da-puta. Por isso mesmo esta escrita marca um espaço seu, e dela se liberta o sarcasmo de uma vida vivida e de quem já percebeu as consequências de estar vivo ou viva.
A demarcação do destino humano em função do género é essencial para se tentar conhecer este universo de Teresa Veiga, num tempo lúcido pós-mítico que foi habitado por certos homens e certas mulheres diferentes entre si. As vozes deles foram apagadas, mas as vozes delas costuram uma espécie de Portuguese Quilt encerradas em espaços interiores por obrigação e posteriormente por opção.
(cont…)