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Teresa Veiga: História da Bela Fria
Por Irene Amaral)
A primeira mulher, escondida sob a capa de uma gorda apertada num vestido, e de convívio fácil, é afinal uma avó suicidómana com razões para o ser. A segunda é a Violante “Diana” que, para se afirmar, segundo uma outra mulher, “foi preciso quase uma mudança de sexo” (14). Segue-se a história da prima quarentona gorda forçada ao celibato por um irmão. A quarta mulher é Maria dos Mártires. Foi violada, tornou-se freira, e casou-se três vezes. O último marido, um jovem de vinte e sete anos, volta a impor a Maria um certo cativeiro, tal é o medo de o perder para outra mulher mais jovem. A quinta é Sara, a “mãe dos mortos.” Sara é a mulher que se encarrega do cemitério, porque, por uma ordem inversa, o filho morreu antes dela. Assim, vive em contacto permanente com a morte, guarda esse mundo onde ficou suspensa a última mulher, a dona da Quinta da Bela Fria. Esta sexta mulher chama-se Aline e é ela a depositária de um segredo (21) que lhe preenche a vida e lhe retira a consciência da passagem do tempo (22).
A narradora insiste na certeza de que a “história” só a pode dar-lha Aline. À terceira visita consegue realizar o seu objectivo. Assim, encaixada na primeira narrativa, começa uma segunda história que esclarecerá o abismo de uma família conduzida ao último espaço interior, a morte das pessoas, com excepção da sobrevivente que é a própria narradora em primeira pessoa. O lugar de protagonista é cedido a uma mulher feiticeira, Ana Florentina, “[o meu pai] estava enfeitiçado por ela” (23). Ana Florentina carrega o destino trágico da mulher sem consciência de que é capaz de despertar o interesse de um homem. Em silêncio, esta solteirona mãe das irmãs casadas apressa o fim de um ciclo, através do seu caso extra-marital com o interessante médico brasileiro Dr. Cavalcanti. Assim se cria o quadrado amoroso, cujas consequências serão dois assassinatos, um suicídio e o aprisionamento de Aline. Ao decidir-se pela permanência na casa paterna, Aline incrusta-se nesse espaço, tornando-se parte da quinta e a quinta parte dela; a Bela Fria da quinta e a Quinta da Bela Fria.
Em “Consequências do Processo da Descolonização” a história é outra, mas é a mesma. O título aponta para um texto completamente neutro de listagem das consequências que teve o movimento da descolonização africana que se seguiu à independência, neste caso de Moçambique. Duas coordenadas são essenciais a este processo, os protagonistas, que são os retornados, e o espaço, que é Portugal nos anos 70. A partir do título esperar-se-ia que o começo da história fosse dado em tom neutro, em forma de contextualização histórica, ou através de uma introdução às consequências sociais, políticas ou históricas da descolonização.
A surpresa está logo ao voltar da página; o tom neutro que faria pressupor o título é completamente arrasado. Esta é uma história sobre um coronel da “nossa África,” que “caga sentenças” à segunda linha, da sua esposa apelidada de “coronela,” uma senhora bem posta “apesar de diariamente fornicada” (61). Deste núcleo familiar fazem também parte dois filhos. A filha do casal é a pragmática Semíramis, cuja conta bancária cresce à custa dos subsídios do Estado para apoio aos retornados, e o filho é o futuro engenheiro electrónico, Péricles; Pikles para os amigos; um adolescente anão descendente dos Ramires, uma árvore que no passado produziu fortes varões.
A família é descrita como disfuncional. Odeiam-se uns aos outros, segundo a narradora, embora reconheça a sinceridade da relação entre os dois irmãos. O pai é um homem com um instinto libidinoso muito forte, sempre disposto a incomodar qualquer fêmea que lhe apareça pela frente; a mãe é a mulher presa às memórias de uma vida luxuosa, embora atenta à preparação do futuro dos filhos; Semíramis é a jovem colonial, o que diz tudo o que há para dizer acerca das jovens modernas que retornavam das antigas colónias em 1975 e 76. O irmão, Pikles, é de certo modo poupado por esta narradora por vir a ser o seu primeiro namorado, o caso das férias de Verão.
O leitor começa a questionar a objectividade desta escrita, na proporção do sarcasmo que ela deixa em tudo e todos por onde o óculo da narradora passa. E o final da narrativa, que pressuporia alguma saudade por essas férias de Verão da juventude, apenas confirma um perfil mesquinho. A narradora demora-se na atenção à deficiência física do rapaz que a chamara a participar no grande “Evento,” com maiúscula (72)!
Irene Amaral
Agosto 2009
University of Massachusetts Dartmouth
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Irene de Amaral é licenciada em Ensino de Português e Francês pela Universidade dos Açores e possui um mestrado em Supervisão, na especialidade do ensino de Português, pela Universidade de Aveiro. Actualmente frequenta o curso de doutoramento em Estudos Luso-Afro-Brasileiros na University of Massachusetts – Dartmouth, Estados Unidos da América. Exerceu as actividades de docência e de gestão escolar no contexto do ensino secundário na Região Autónoma dos Açores entre 1989 e 1999. Desde 2001 tem leccionado a disciplina de Português Língua Estrangeira ao nível do ensino pós-secundário nos Estados Unidos e dedica-se, em regíme de voluntariado, ao acompanhamento da elaboração de materiais de apoio ao ensino de Português na América do Norte.
NOTA
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“A Associação Portuguesa de Escritores acaba de atribuir o Grande Prémio de Conto “Camilo Castelo Branco” 2008 ao livro Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín, de Teresa Veiga (Cotovia), autora que já ganhara este prémio em 1992, com História da Bela Fria“.
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