Artur Goulart, no fio das palavras
– poesia –
Foi lançado no passado dia 26 de Novembro na vila das Velas, ilha de São Jorge, um livro de poemas de Artur Goulart intitulado no fio das palavras. Velense muito acarinhado pelos conterrâneos, o autor foi homenageado pelo Município que o condecorou com a medalha de honra.
O título do livro remete explicitamente para a premência da comunicação verbal e o fio que conduz este desígnio caminha de mãos dadas com a temática do amor:
A rosa que me deste
plantada na ternura dos teus olhos
cada manhã que passa
refloresce
[…]
Quem é e o que faz o nosso poeta?
Aqui não há mar, avô! Aqui, em Évora onde vivo e trabalho há mais de trinta anos, não há mar, o nosso mar é aí no meio do Atlântico, senhor da ilha que me deu berço em 1937, S. Jorge dos Açores, avô! Olha, dedico esta “Carta com post-scriptum” a teu pai, meu bisavô baleeiro pr’às bandas de Betefete [New Bedford].
Foi na cidade Património Mundial que Artur Goulart, bastamente conhecido como especialista em arte, mormente sacra, pôs a render os talentos do seu vasto e variado leque de saberes e competências: Licenciatura em Arqueologia (em Roma), pós graduação em Museologia e História da Arte, Curso Superior de Estudos Árabes (em Évora); membro do Conselho Internacional de Museus, da Associação Portuguesa de Museologia, da Comissão de Arte, Arqueologia e Defesa do Património, fez parte do secretariado científico da exposição “Triunfo do Barroco”, da Europália 91.
Tendo-se radicado no continente, entrou para o quadro de pessoal do Museu de Évora e em 1992 foi nomeado seu Director, cargo que exerceu durante sete anos. Hoje, aposentado, é coordenador técnico-científico do Inventário do Património Artístico Móvel da Arquidiocese de Évora, projecto começado em 2002, no âmbito do qual foi feita uma grande exposição Tesouros de Arte e Devoção, de que foi comissário, com o respectivo catálogo, e já foram publicados em edição bilingue sete livros da série dos concelhos, estando mais dois para sair em breve. Enquadrado no mesmo projecto, foi publicado um outro volume, Pedras Preciosas na Arte e Devoção, do gemólogo Rui Galopim de Carvalho. Em fase de tradução está mais um livro, este de co-autoria com Rui Galopim, O Santo Lenho da Sé de Évora, uma das peças de joalharia mais ricas do país.
Como investigador no campo da Arqueologia, publicou diversos trabalhos em revistas da especialidade, mormente no que respeita à cultura árabe em Portugal.
Mas é do homem de letras, do humanista, do poeta que aqui se fala.
Em Angra do Heroísmo, leccionou História da Arte e Liturgia no Seminário Episcopal de 1962 a 1978 e chefiou a equipa redactorial do Jornal A União, entre 1968 e 1973. Integrado no ambiente cultural que o rodeava, Artur Goulart acompanhou e participou em várias das diversas manifestações culturais que marcaram o terceiro quartel do século passado nos Açores, tais como “Pensamento”, suplemento quinzenal do jornal A União (1953-1956), o Instituto Açoriano de Cultura com a revista Atlântida (1956) que continua a publicar-se, a Gávea – Revista Açoriana de Arte (1958) e a Galeria Gávea (1959), as Semanas de Estudo (1961-1966), tendo feito parte da Comissão de Organização da II juntamente com José Enes, Emanuel Félix, Weber Machado e Trindade Armelim (1963), “Glacial” – a união das letras e das artes”, suplemento do jornal a União (1967-1973), dirigido e organizado por Carlos Faria. Merece relevo a divulgação de poesia de vários quadrantes patente nos 105 números que editou, de Dias de Melo, Almeida Firmino, Macedo Fernandes, Borges Martins, Álamo Oliveira, Urbano Bettencourt, a António Botto, Miguel Torga, Eugénio de Andrade, Rui Knopfli, José Craveirinha, Pablo Neruda, e muitos mais, para além dos poetas que vieram a colaborar na equipa coordenada por Carlos Faria, José Henrique Santos Barros, Marcolino Candeias, David Mestre e Ivone Chinita. A propósito de Glacial dirá Santos Barros: «O suplementarismo cultural estava em voga, por aí se canalizavam muitas expressões de resistência ao regime fascista português. “Glacial” é o ar novo a circular nas ilhas». De salientar que “Glacial”, exceptuando o primeiro ano de edição, o jornal A União que o editava teve como chefe de redacção Artur Goulart que não deixou de publicar no penúltimo número o seu poema “Ilhéu Emigrante”.
Ainda estudante do Seminário de Angra publicou os primeiros poemas na página cultural “Pensamento” referida anteriormente. A partir de 1958 passa a escrever poesia com mais regularidade, produção que vai ficando quase toda ‘guardada na gaveta’. Quase toda, porque concorreu e ganhou, com o poema “Ilhéu”, o 2º prémio – o 1º foi atribuído a Eduíno de Jesus – dos Jogos Florais da Cidade (Angra, 1959), publicou “Hei-de fazer da minha angústia um barco” na página “Artes e Letras” do Diário Insular (Abril de 1968) e viu “Ilhéu emigrante”, que tinha publicado em Glacial, exposto por Álamo Oliveira, em “20 desenhos para 20 poemas” (Angra, 1973). Além destes, houve quem conseguisse ‘roubar-lhe’ e publicar outros poemas, mormente em antologias, casos de “Terra-mater dolorosa”, “Quadras da vida e do mar”, “Carta com post-scriptum”, “Como um rio”, “Ilha revisitada”.
Natália Correia, na sua não muito conhecida peça teatral Erros Meus Má Fortuna, Amor Ardente, para relevar a vida difícil de Camões na Índia, ironizou pondo os convidados do poeta a ‘papar poesia’. A alegoria é a mesma, mas o tom é outro quando Artur Goulart escreve aos leitores de Papel a Mais, de Resendes Ventura, um poeta livreiro de S. Miguel que vive e trabalha em Setúbal: Não devore a poesia. Se não resistir, levado pela ansiedade, a deglutir tudo de uma só vez, volte de novo calmamente, aos poucos, lembre-se que a poesia é como um bom vinho, aprecie a cor, o aroma, a casta, a transparência. É para saborear, só assim se consegue apreender as palavras e o que está para além delas e delas faz um acto de criação.
E que bem se aplica o conselho à leitura deste livro. As suas poesias, as palavras e o que elas revelam, são iguarias de sabor delicioso:
Saboreio o gosto gostoso das palavras
pronunciadas em jeito de nascer
diz o poeta num bonito jogo sinestésico do poema que traz o título do livro, “No fio das palavras”.
No poema “Em louvor da poesia”, que dedica a Emanuel Félix o sujeito lírico revela o lugar onde encontrou a rota luminosa da sua viagem, afanosamente buscada dia e noite, pelos enigmáticos territórios da existência:
Até que descubro, de repente,
no meio de um poema – vulgar, como parecia, –
que o sítio exacto da esperança
é à proa deste barco
em que me embarco.
A musicalidade é característica recorrente nesta poesia, mesmo que relevante nuns poemas mais que noutros. Repare-se nestas “Quadras da vida e do mar”:
Baloiçar lento da quilha
com as ondas a chorar…
O corpo preso na ilha,
coração preso no mar
Aquela nuvem lá longe
parece de temporal.
Andam gaivotas brincando
além no mastro real.
Ó do leme tem cautela!
Há baixios a aparecer!
Quero viver o meu sonho
antes da lua esconder
e atente-se nas expressões no mastro real e tem cautela que conotam o poema à “Nau Catrineta” e à “Barca Bela” de Almeida Garrett.
Esta cadência de sabor popular traz consigo a leveza, a serenidade duma maneira de estar que vai além das tempestades, dos estorvos da vida embora lhes assinale a existência. Veja-se esta construção curiosa, igualmente binária, agora um pouco ao sabor de certa toada antiquíssima:
“Ilhéu Emigrante”
Não há que fazer!… não há que pensar!…
A fome não parte os dentes da roda,
os filhos não comem e bebem do ar,
o amor não é coisa que passe de moda.
[…]
Música, poesia, pintura.
A morte do pintor motivou “Pequena serenata eborense para Dacosta” a partir de dois quadros “Romana em Évora” e “Está calor em Évora”. O poema recorda, parafraseando-a no cabeçalho, uma pintura de 1940 a que o grande artista terceirense deu o título de “Serenata Açoriana”. Trata-se de um óleo sobre tela que a Casa da Moeda divulgou o ano passado imprimindo-lhe uma reprodução na capa do Vol. II, Tomo II de Poesia de Vitorino Nemésio. No poema, de novo a presença imprescindível da ilha:
ausente, mas presente
como há muito tempo
em Paris, em Évora ou onde te escondes,
longe da ilha, mas na ilha sempre.
“Angra”, o mais bem conseguido dos dois sonetos que integram a obra, merece uma atenção especial, tal é a expressividade do jogo conotativo da sua construção. Fiquemo-nos pela primeira quadra. Nesta angra da memória te revejo – angra minusculada sugere que o sujeito lírico revê aquilo que tem guardado na mente, à maneira de uma baía bem protegida; memória dessa Angra que revivo – Angra, agora com maiúscula, a designar a cidade capital da ilha Terceira de que se obtém uma panorâmica junto do obelisco situado na sua zona mais alta conhecido por ‘Memória’; cidade atormentada dor – o terramoto destruidor da urbe dera-se não muitos anos antes da escrita do poema; desejo / volúpia de morrer livre e cativo – morrer livre, «Antes morrer livre que em paz sujeito» é divisa do brasão de armas, herança quinhentista inscrita na fortaleza de S. João Baptista incrustada no sobranceiro Monte Brasil. Lembra a variante camoniana duma certa «cativa / que me tem cativo» – chamada Bárbara – «porque nela vivo / é força que viva».
Com o mar sempre a emoldurá-las, as ilhas são uma presença que se diria constante, ora vistas de ar tristonho e estagnado e de [s]abor amargo e húmido cuja solidão o mar chora, pois lhes conhece todos os segredos, ora utilizadas como recurso expressivo: comparação a dizer que o baloiço é como uma ilha sem mar, ou processo caracterizador do sujeito lírico, [o] corpo preso na ilha / coração preso no mar.
Dos quatro elementos primordiais, o líquido ocupa, de facto, lugar privilegiado na poesia de Artur Goulart. Não tanto sob a forma de lágrimas, sim, nesse leit-motiv que é o mar e tudo o que com este se relaciona. Quando pretende dizer que alguém chora, o que é muito raro – para quê as lágrimas o sal / resiste às marés, socorre-se da metáfora ou da alegoria, como é o caso do poemeto “Como um rio”,
[a]s palavras nascem-me dos olhos
como um rio
à procura do mar que as abrace.
Esse mar, sempre cantado pelos poetas açorianos, é, em Artur Goulart, lugar de sonho, personagem pacificadora. Pode ser revolto de distância e ansiedade, mas as suas fúrias / em mimos se desvanecem por acção dos maternais desvelos de que é capaz o duro e negro basalto da ilha; carregado de mistério, é espaço de sonho, é brinquedo imenso / azul… verde… cinzento / (nem sei que cores terá) / onde o sol se espraia que falta à criança de “O menino e o mar”. Personificado, chora a solidão das ilhas, faz-se espelho mágico que transfigura a cidade de angra n’um corpo de mulher belo e esquivo. O sujeito lírico há-de dizer em forma de oração, queixando-se da terra, no mar me sinto viver / em terra me estou a afogar. Nas já referidas “Quadras da vida e do mar”, os sonhos bóiam à tona da água; navios ancorados são a calma insatisfeita; o baloiçar da quilha põe as ondas a chorar; o coração está preso no mar; a vida vivida é peixe esquecido / sobre as escadas do cais; as marés são o seu divertimento e o que faz falta é um barquinho de brincar. Uma curiosidade estatística mostra-nos que o poeta se socorreu da palavra mar 83 vezes; de barco, caravela, veleiro, quilha e velas 17; de maré, ondas e espuma 16; e, ainda, com igual número de ocorrências, peixes, garajaus e gaivotas.
O interesse de Artur Goulart pelos vestígios da presença árabe na península, que as investigações e trabalhos antes referidos no tocante ao Alentejo confirmam, está bem patente no poema “Alhambra” dedicado ao lendário Boabdil, sultão de Granada quando este último reduto mouro da península foi tomada pelos ‘reis católicos’ em fins do século XV. Conhece-se a história das lágrimas que terá chorado o rei muçulmano ao abandonar, com o respectivo séquito, o célebre palácio de Alhambra e a dura acusação que lhe terá dirigido sua mãe: ‘Chore agora como mulher o que não soube guardar como homem’. Nos jardins do palácio situado na colina de Sabika sobranceira à histórica cidade evidenciam-se o do ‘Suspiro do Mouro’ o local onde se terá dado a cena do choro, o ‘Pátio dos Leões’ e a ‘Torre dos Sete Pisos’ por cuja porta Boabdil terá sido obrigado a abandonar o palácio e à volta da qual nasceram e se desenvolveram misteriosas histórias de mouras e mouros encantados. O poema de Artur Goulart, evocando uma dessas lendas, fala-nos do regresso momentâneo do herói ainda jovem, [q]uando um ano finda e outro avança para um mágico reencontro / no Alhambra:
Dizem que as lágrimas que o choram
nunca secam nas fontes de Granada…
E quem nelas se mira descuidado
sente uma saudade insuspeitada,
a mesma saudade que, para a alentejana Florbela Espanca, é «ânsia estranha, / Mágoa não sei de quê!» e a leva a exclamar: «Ah! De Boabdil fui lágrima na Espanha».
A “Carta com post-scriptum” termina com esta invocação:
Tu conheces, avô, um coro alentejano?
Como Artur Goulart, também eu, açoriano jorgense, vim assentar arraiais perto desta terra cheia de donos onde não vale gritar: este mar / é meu! / E teu seria o mar! É que a terra não é o mar.
Vila de Mora, Alentejo, Novembro de 2010
Olegário Paz