Eu Me(Te) Digo
(Adelaide Freitas)
Declaro-me aqui filha da terra
por mundos repartida
New York Coimbra S.Miguel
permaneço plantada no Nordeste
na claridade da terra infinita
Ouço violinos ao vento
quando sulcos imemoriais
tomam o volume do mar e
inefáveis sussurram a infãncia de cada passo…
Na ausência da casa sem murmúrio de pais nem mães
edifico no quintal a minha morada
Gosto de mondar cavar semear
sentir rente à pele a brisa redonda e muda
o sibilante cheiro da terra
a doce comoção da luz e das cores
o roçar quente da folha do milho
Da criança reservo a espontaneidade
o orvalho suave do espírito
o fascínio das mil flores
e tudo o que não tem nome
Na adulta
a Escuta a Espera…
gosto das contradições
e nos pólos mantenho viva a chama de cada uma
a mulher e a menina
quero-as firmes Assim de carne e de sangue
de alma e de paixão
em nada sobejadas em nada subtraídas
Fazem parte do meu quintal
por onde passeio
entre alvos malmequeres
magos brincos-de-princesa e
o rosa tenro da flor dos pessegueiros
Lá longe……o mar largo
No horizonte…
O risco tremido da hortênsia
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O Blog Comunidade foi criado há dez anos e quatro meses sobre a perspectiva da distância. Do olhar de quem nasceu e vive nos Açores ou, por outras geografias, radicado na América do Norte, na Europa, na Ásia, na África, no Brasil, ou em qualquer outra parte do mundo como bem esclarece na sua abertura oficial.
É escrito por vozes de grande expressão das nossas comunidades com ligações intensas com os Açores,o arquipélago constituído por nove ilhas vulcânicas, terras de lavas, sismos, maresia, sargaços, fincadas no meio do Atlântico Norte. Lugar de origem. Esquina dos mares, ponto de cruzamento,de passagem, de partida e de regresso.Rota de pessoas e culturas.
Berço de vozes que se fazem ouvir por todas as latitudes: ora poéticas, musicais, cheias de saudade, ternas como a brisa suave que embala a palmeira, ora vibrantes, ousadas, visionárias, contundentes, fortes como os ventos que correm como um cavalo à galope por esse mar, pelo céu.
Por ser o Blog Comunidades um espaço aberto à conversa com as nossas comunidades, à refletir mundivivências a partir do "olhar distante e olhar de casa," alicerçado no vínculo afetivo e intelectual com os Açores.
Nestes dez anos tivemos momentos de grande júbilo, de alegrias e conquistas dos nossos colaboradores.
Mas também, momentos de profunda tristeza por perdas irreparáveis e um sentimento de saudade que não se define mas se sente profundamente.
Nesta noite de 6 de Junho de 2018 … quero reverenciar a vida e a obra da professora e escritora ADELAIDE FREITAS, uma voz açoriana de primeira grandeza, que se faz ouvir fortemente por tudo que ensinou, realizou e publicou do ensaio à poesia com inteligência e pena brilhante, liberta, sempre atenta a voz da gente açoriana, dos emigrados, dos que ficaram nas ilhas, dos regressados, dos nascidos e que vivem neste Mundo Ilhas.
À querida Adelaide, querida amiga e mulher amada do professor e escritor Vamberto Freitas,nossa homenagem junto a lágrima da saudade que teima molhar a cara.
Sua voz nunca será ausente. Porque continua presente e surpreender-nos-á sempre através dos livros publicados, pois em cada ensaio de tema social ou literário ficou a sua inteligência, o seu poder analítico, a sua capacidade de convencimento, os seus saberes de âmbito universalista, como muito bem expressou o escritor terceirense Álamo Oliveira,em janeiro de 2013, no comovente artigo: ADELAIDE FREITAS – a grandeza de um sorriso por dentro da vida
Desejamos ao Vamberto, familiares e amigos da Adelaide o conforto do amor e a força da guerreira Adelaide, a mulher admirável que tivemos a graça de conviver.
Fica a sua palavra como o Sorriso por dentro da Noite.
Nosso sentimento de profundo pesar
Lélia Pereira Nunes
Irene Maria Blayer
Florianópolis, 23 horas do dia 06 de Junho de 2018
O GESTO
(Adelaide Freitas)
Estende daí a tua mão
Desce comigo ao templo liso das manhãs
e deixa-te ficar…
vê agora como sentes a fundura do chão
o leito da ribeira a fímbria das emoções
Deita-te aí por um instante
na deleitosa corrente da ribeira
e toca-a de mansinho
que de tão mansa não a sintas
Escuta agora
o murmúrio das folhas caídas
e debruça-te sobre
a frescura fulva do olhar
ouve o gorjear da passarada e a água a cantarolar
Dissimula um gesto lento que de lento seja
Profundo
qual carícia qual tugúrio qual divina proporção
Desce ainda mais fundo
até onde a sépala do lis derrama o seu perfume
Espreita então o som da serpente arrependida
Vê agora o teu rosto…
Quando ele dos teus olhos se mira
Deixa-te ficar nesse corpo líquido
À sombra da rama frondosa emudecida
Deixa-te assim sonhar
Ao sabor fresco da corrente
No flúvio gesto da manhã
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Adelaide Freitas ( Maria Adelaide Correia Monteiro de Freitas)
Um dos grandes nomes da literatura açoriana,se destaca na prosa poética,no ensaio, na poesia e no romance. Nasceu na Ilha de S.Miguel(Achadinha/Nordeste)em 1949. Fez o doutoramento em 1987 sobre a obra de Herman Melville:Moby-Dick A Ilha e o Mar – Metáforas do Carácter do Povo Americano. Professora Associada da Universidade dos Açores,hoje reformada. Publicou o seu primeiro romance,Sorriso por dentro da noite (2004) e Nas duas Margens:da Literatura Norte-Americana e Açoriana (2008).
Recentemente,a 21 de maio de 2018, recebeu Insígnia Autonómica de Reconhecimento, concedida pela Assembleia Legislativa do Governo Regional dos Açores.