Honoris Causa Onésimo.
Palavras da madrinha Isabel Alarcão
Prezado Onésimo (que não gosta de ser tratado por Doutor nem por Professor, como li num dos seus escritos. Vou respeitar, prometo)
A Universidade de Aveiro, através do seu Reitor, incumbiu-me de apresentar à comunidade universitária — e aos amigos que se quiseram associar ao nosso 40º aniversário — a figura de Onésimo Teotónio Almeida a quem o Conselho Científico decidiu, por unanimidade, atribuir o título de Doutor Honoris Causa.
É para mim uma honra, uma alegria e uma responsabilidade “amadrinhar” o novo doutor, se me permitem este neologismo, figura de estilo tão habitual nos textos do nosso homenageado. A responsabilidade é muito grande e ia aumentando à medida que as minhas leituras me iam embrenhando no seu pensamento complexo, embora enroupado numa linguagem clara e atraente.
Na minha apresentação podia quedar-me pela leitura analítico-interpretativa do seu vasto currículo. Preferi uma abordagem mais pessoalista, relacionando o registado no papel com o que a minha memória recorda dos contactos (infelizmente poucos) que com ele já tive. Assim, gostaria de a todos convidar a descobrirem comigo a pessoa de Onésimo, em primeira mão a partir da sala de estar da sua casa, pois tenho para mim que o modo como organizamos o nosso espaço habitacional diz muito da pessoa que nós somos.
Sala ampla, aberta ao jardim, cheia de luz e harmoniosamente decorada, onde não falta a cultura expressa em quadros, em livros e em discos ou CDs nem as fotografias com que o exímio fotógrafo regista pessoas, momentos e lugares. As plantas do interior trazem para dentro de casa um pouco do seu jardim, os sofás convidam a uma boa e prolongada conversa. Uma pessoa sente-se lá muito bem e qualquer um que chegue tem sempre lugar.
Neste espaço habita o irrequieto Onésimo Almeida, o homem de cultura, o leitor compulsivo, o escritor, o conversador inveterado, o comunicador atraente, o humorista.
É lá que recebe os amigos e conversa. E como sabe conversar! A sua capacidade de comunicação e os temas de conversa que nos traz são contagiantes. Dotado de um poder de palavra extraordinário, uma memória privilegiada, uma arguta capacidade de observar e de analisar criticamente, é bom estar com Onésimo.
O poder da sua palavra encanta não apenas quando interage face a face. O mesmo acontece na escrita, uma escrita que frequentemente assume características do que eu me atreveria a chamar de videográfica. Resolvi trazer um exemplo e peço-vos que tentem imaginar a cena em vídeo. Vou dar-lhe a voz: “observe-se como um grupo de patrícios organiza algo tão simples como um passeio de grupo em dois ou três carros. Multiplicam-se as opiniões, expressas ao mesmo tempo, e em tom de voz alto para ser ouvido no meio do barulho dos outros. Cada um achando que a sua sugestão sobre o trajecto será a melhor. Depois, o combinado entre todos acaba de um momento para o outro por ser completamente alterado ao menor pretexto e as combinações iniciais vão-se todas por água ao baixo. De um momento para o outro, está-se de novo na estaca zero”.
Numa escrita circunstanciada, transparente e estimulante, plena dos tais criativos neologismos e inesperados jogos semânticos, o autor retrata-nos o quotidiano trivial em centenas de crónicas, ao mesmo tempo que, como pensador, “denuncia as grandes questões que subjazem à espuma dos dias”. Impossível separar o cronista do pensador.
Açoriano de origem, encontra-se radicado nos Estados Unidos, em Providence, desde 1972, tendo-se doutorado em Filosofia na Brown University, onde exerce a docência como Professor Catedrático, nas áreas de Filosofia, Cultura e Literatura, tendo ajudado a criar e dirigido o Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros. Profundamente integrado na cultura americana “onde me sinto muito bem”, diz ele, não se desligou da sua terra natal, de tal modo que, para ele, o Oceano Atlântico, de tão familiar, se transformou num mero rio.
No seu livro, intitulado “ O Rio Atlântico” escreve: “Ao fim de vinte e cinco anos de fazer-me ponte sobre o Atlântico, pé-cá, pé-lá, desembarcando em Lisboa, Ponta Delgada, Lages ou Boston, o oceano tornou-se bem mais estreito e instalou-se-me num quotidiano de onde se vê sempre a outra margem, com as ilhas de permeio a facilitarem o salto”. É este o seu triângulo do coração. Açoreano em Portugal, Português na América, Americano nos Açores, como gosta de se definir é também um cidadão do mundo, um passageiro em trânsito (numa alusão ao título de um livro do seu patrício Cristóvão de Aguiar).
A temática da açorianidade é recorrente na sua obra. Em O peso do Hífen, reúne um conjunto de interessantes escritos sobre os luso-americanos e as suas vivências na 10ª ilha do arquipélago açoriano, a Lusalândia como lhe chama, um “pedaço de Portugal rodeado de América por todos os lados”. Numa óptica sociocultural, analisa o fenómeno da Diáspora açoriana e retrata-nos as dinâmicas da dialética entre enraizamento e desenraizamento, entre americanização e defesa da identidade açoriana. Numa perspetiva histórica, achei bem interessante perceber que, a um esforço de “americanização” no imenso melting pot americano, bem evidente até na osmótica transformação de nomes como Lourenço em Lawrence ou Medeiros em Mediros e Mendonça em Meadow, se sucedeu a chamada “integração em salada”, modalidade em que as várias etnias convivem sem perderem a sua identidade nem abandonarem as manifestações do que designa por “estruturas culturais profundas”
A identidade é, aliás, outro dos seus temas de eleição. A ele voltarei mais tarde para agora salientar a sua faceta de viajante cultural.
A sua presença no mundo tem o levado a proferir conferências em países tão diferentes como Canadá, Argentina, Brasil, Colômbia, Tailândia, Caraíbas, Alemanha, França, Hungria, Noruega, Islândia, Moçambique e outros mais.
Para além das viagens no sentido real, delicia-se a passear pelo mundo da literatura. No seu mundo intelectual co-habitam escritores e pensadores como Antero de Quental, Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio, José Saramago, Jorge de Sena, José Rodrigues Miguéns, Natália Correia, Eduardo Lourenço, José Enes. A sua ligação à nossa história literária, associada à sua criatividade resulta em títulos sugestivamente decalcados como “Viagens na minha era”, “Quando os bobos uivam” ou “A sapateia americana” .
Humorista é uma das facetas que o caracteriza, humor que se manifesta nas inúmeras estórias com que nos brinda ou “incluindo-o à sorrelfa” no seu discurso, mesmo no mais sério. Sendo este um dos seus traços, eu não poderia deixar de contar uma delas, pedindo desculpa por nem de longe me assemelhar a ele na capacidade de “contadora de histórias”.
Estava um dia Onésimo numa taberna em S. Jorge quando a terra começou a tremer. Os abalos sucediam-se, uns com mais intensidade, outros mais fracos. As pessoas assustadas, claro. Um velhote, porém, mantinha-se muito calmo. As pessoas perguntavam-lhe: “De que grau foi este, Ti Ventura?” E ele: “Grau 3”. Novo abalo. Nova pergunta: “ E este agora?” Resposta serena e calma do Ti Ventura: “Grau 5”. Onésimo, intrigado com a sabedoria do velho, perguntou-lhe como é que avaliava o grau dos abalos. Resposta do Ti Ventura: “O’me, é conforme o medo” (Desculpe, Onésimo, mas eu tive de alterar um pouquinho para evitar aqui o português vernáculo.
De Onésimo Almeida, as pessoas conservam muitas vezes a ideia do cronista e contador de estórias. Mas Onésimo é também um notável filósofo e ensaísta que Miguel Real, na sua obra, “O pensamento Português Contemporâneo (1890-2010) c
oloca ao lado de Teófilo Braga, Antero de Quental e José Enes, três outros pensadores açorianos. A sua veia de filósofo tem vindo a acentuar-se, ou, pelo menos, a desvendar-se ao público nos últimos anos, como atestam os livros “De Marx a Darwin. A desconfiança das ideologias (2009), O Peso do Hífen. Ensaios sobre a Experiência Luso-americana (2010) e Utopias em Dói Menor. Conversas Transatlânticas com Onésimo (2012).
Nos seus ensaios a escrita é lógica, racional e baseada em evidências, sempre que possível, ou deixando uma porta aberta ao questionamento quando ainda sente as ideias envoltas em nevoeiro. Para ele, ”a filosofia é a conversa mais exigente de todas em termos de rigor”. Em de Marx a Darwin navega nos meandros da ciência nas suas relações com a filosofia, sublinha o atual primado da biologia e da genética, redimensiona a relação entre cultura e natureza, salienta o reconhecimento da ignorância como saudável atitude fundacional.
Considera até que “uma das marcas fundamentais do nosso tempo é a consciência da Nossa ignorância”. Pois é, Onésimo, sê-lo-á no mundo da ciência. Mas fora desse universo, deparamo-nos, cada vez mais com gente que imponentemente fala de tudo sabendo pouco de nada!
Propenso a filosofar, analisa a sociedade criticamente, questiona conceitos, valores e teorias, considera as utopias como forças motoras de mudanças capazes de dar sentido à vida. “Sociedade sem ideais não vai a lado nenhum” é o título de uma das suas muitas entrevistas.
Frequentemente questionado sobre o conceito de identidade, Onésimo estabelece uma distinção interessante entre dois conceitos vulgarmente confundidos: carácter nacional e identidade cultural. O primeiro, voltado para o passado, traça as linhas de força de uma cultura. O segundo, virado para o futuro, apresenta-se como “ o conjunto de ideais que norteia uma comunidade, aquilo que se deseja”. É a identidade como relação, como “união de vontades “e ponte que se lança entre o presente e o futuro.
Ao dizer “que é sempre muito mais dinâmico e produtivo concentrarmo-nos no futuro, no conjunto de valores que unem uma comunidade do que no passado”, penso poder descortinar o seu ideal para um Portugal renovado, o seu Portugal para o qual olha com olhar crítico, mas com esperança.
Clara Ferreira Alves, em entrevista em Junho de 2013 descreve-o como “um intelectual português que pensa as questões da identidade como poucos as pensaram. Com erudição e lucidez. Sem desânimo.”
A vivência da sua dupla identidade, do ser e não ser, do estar e não estar propiciam-lhe um olhar distanciado sobre Portugal e os portugueses e, simultaneamente, uma comprometida afeição com o país, o nosso.
Vê-nos como pessoas plenas de humanidade, emotivas (no seu melhor e no seu pior), capazes de estabelecer redes relacionais, amantes da paz e da liberdade, com um passado esplendoroso na abertura ao mundo e ao desenvolvimento da ciência.
Mas a sua pertença não o inibe de ver também aspetos menos positivos. Assim, nós portugueses aparecemos nos seus ensaios como auto-infantilizados, sempre prontos a atirar as culpas para os outros, com grande tendência para nos auto-flagelarmos, oscilando entre um excessivo otimismo e um pessimismo depressivo, vivendo momentos de incerteza e falta de confiança, desprovidos de utopias, mais interessados em defender a nossa imagem do que em argumentar em favor das nossas ideias, mantendo do passado o receio do debate.
Vou regressar à sua sala de estar, por onde nos lançámos à descoberta de Onésimo. Quem me escuta, ter-se-á porventura perguntado quando e porquê entrei eu na dita sala. Corria então o ano de 1999. Onésimo convidou-me para proferir uma conferência na Brown University, instituição que visitei ciceronada por ele próprio e onde explorei o modo como a Universidade recebia os seus novos alunos. Era então Vice-Reitora para os Assuntos Pedagógicos e estava interessada em desenvolver, em Aveiro, um programa de acolhimento, num tempo que hoje, olhando para trás, considero ter sido ainda a destempo. Neste ano que agora finda, e que o Senhor Reitor elegeu como o Ano do Ensino, fica bem não só regozijar-me pela institucionalização do sonhado programa, mas também analisar a figura do nosso novo doutor na sua faceta de docente universitário.
Direi primeiro que muitos dos seus ensaios têm origem nos temas tratados nas aulas. É o caso do livro “De Max a Darwin”, um sub-produto, dir-se-ia hoje em linguagem economicista, dos debates na disciplina “Valores e Mundividências” que ministra para os alunos do 4º ano. Nas suas aulas interpenetra-se a docência e a investigação pois, como ele próprio afirma, “as aulas são o local privilegiado para os professores partilharem os resultados da investigação em que se ocupam. Os alunos são os nossos primeiros críticos”.
Dos alunos, ele diz :”Gabo com frequência os alunos que a sorte me deu na Brown”. E não gaba apenas os estudantes dos anos mais avançados, mas também os do 1º ano, que os tem numa disciplina em que aborda as questões da modernidade, 12 alunos à volta de uma mesa, um “mimo” que a Brown oferece aos recém-chegados, ou seja um seminário orientado por um professor catedrático. Eu chamar-lhe-ia também um mimo para os professores.
Mas se esta é a perceção que ele tem dos seus alunos, estes, por seu lado, admiram-lhe a proximidade (que não é inimiga do rigor e da exigência), a disponibilidade, o poder de escuta e de compreensão, o modo como confia nas suas capacidades e lhes concede autonomia. Nele coabitam dois grandes ingredientes da pedagogia: a capacidade de desafiar e, simultaneamente, a de conceder apoio sem protecionismo. O seu profundo espírito de curiosidade intelectual, que contagia, aliado ao gosto pelo confronto de ideias, dá à sua docência um tom de diálogo. Das suas aulas faz um lugar de debate, onde se aprofundam ideias e argumentos e onde cada um tem direito a ter a sua própria voz
Mas há mais a salientar. O seu amor a Portugal, aos Açores, à cultura, evidencia-se na sua faceta de “passador de culturas”, de tradutor, de editor. Nesta frente, fundou a editora Gávea Brown, que dirige, e a revista homónima, ambas dedicadas à edição, em inglês, de obras de literatura e cultura portuguesas. É co-editor do e-journal of Portuguese History e de uma revista de Estudos Pessoanos, editadas em cooperação internacional e também publicadas na Brown.
Como excelente comunicador que é, fica muito bem nos cenários radiofónicos e televisivos. E assim, para além de aparições mais fortuitas, mantem, desde 1979, um programa bimensal (Daqui e da Gente) no Portuguese Channel de New Bedford, onde leva portugueses que por lá passam. Também me levou a mim. Caía um forte nevão, a estrada estava muito perigosa, mas era preciso conduzir para chegar a tempo de entrar no direto.
É Faculty Fellow do Wayland Collegium for Liberal Learning, membro de várias sociedades e associações, de que destaco a Academia Internacional da Cultura Portuguesa. Entre distinções e prémios, recebeu o título de Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
Na Universidade de Aveiro também já nos habituou à sua presença e podemos considerá-lo um parceiro no desenvolvimento da nossa instituição. Para além da participação em encontros, congressos, seminários e aulas, é membro do conselho científico da Revista da Universidade de Aveiro/Letras, tem atuado como conselheiro na elaboração do projetos de investigação e integra o Painel Internacional de Acompanhamento da Escola Doutoral.
Na proposta de concessão do título apresentada ao Conselho Científico, pode ler-se: “A colaboração deste conhecedor atento da academia lusa bem como do diálogo intercultural que estabelece pontes entre as diferentes margens do Atlântico, em muito tem
contribuído para dignificar e prestigiar a Universidade de Aveiro. A sua personalidade solar, marcadamente entusiasta, jovial e dinâmica, características indispensáveis ao ofício e à paixão do conhecimento fazem, do Professor Onésimo Teotónio Almeida, uma “boa companhia”. E a UA, que agora celebra 40 anos, tem-se construído em “boas companhias”.
É esta uma figura que em si harmoniza as facetas de homem de cultura, leitor compulsivo, escritor atraente, humorista, comunicador inveterado, professor universitário, intelectual, estudioso, o humano humanista que filosofa a partir da realidade que observa, analisa, interpreta e interpela. É para esta personagem que, fazendo-me intérprete da vontade da comunidade universitária aveirense, solicito ao Excelentíssimo Senhor Reitor se digne outorgar-lhe o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro.