Sempre acreditei que voltaria a Macau. Que este bafo quente à saída do ferry tocaria novamente a minha pele, numa carícia feita de memória. Há vinte anos, vi pela primeira vez esta terra, numas breves férias de uma semana, acompanhada por um grupo de jovens, tal como eu, a fechar ainda as portas da adolescência e a sonhar novos horizontes. Todos havíamos sido premiados num concurso, para o qual tínhamos escrito textos sobre as nossas terras de origem, mas este era um horizonte que nos transcendia o sonho. Havia a calçada portuguesa, os edifícios do centro histórico, o calor voraz e húmido de Agosto, os rostos, as línguas indecifráveis, o Mercado Vermelho onde animais não comestíveis para os padrões ocidentais se vendiam para consumo, a parte chinesa da cidade, os tintins… Tudo tão novo e estranho que, por mais que me esforçasse, o olhar não conseguia apreender e gravar.
Agora, vim a cavalgar um sonho: o trabalho como jornalista, recusado pelo meu país que em tempos de Troika, me atirou para as filas dos Centros de emprego, após longos anos de trabalho, a tentar revelar realidades escamoteadas, ocultas tantas vezes em marasmos de interesses poderosos. Na verdade, poderia dar a volta à vida de outra forma, fazer outra coisa, sem sair da tal “zona de conforto” que já se tornou um cliché. Mas, se o jornalismo sempre foi o que fez vibrar a minha alma, como aceitar mudar o rumo e limitar-me a boiar como barco sem rumo? Olho para a multidão que me rodeia e tento ler nos seus rostos ansiosos todas as histórias que guardam. As malas chegam empilhadas em carrinhos metálicos. O terminal de ferry ainda não tem um tapete rolante. Todos se precipitam de cada vez que surge uma dessas paletes, na esperança de resgatar a sua bagagem, esses fragmentos de vida que alicerçarão e alimentarão o quotidiano nestas paragens – independentemente de estarem na terra natal ou de acolhimento. A verdade é que o ano Novo Chinês está a nascer e dois mil e doze voará no dorso
do Dragão, um dos mais admirados do zoodíaco, a ponto de o número de gravidezes aumentar substancialmente para que os filhos nasçam sob este signo auspicioso.
do Dragão, um dos mais admirados do zoodíaco, a ponto de o número de gravidezes aumentar substancialmente para que os filhos nasçam sob este signo auspicioso.
O tempo passa. A gente começam a escoar-se, ao ritmo manso de uma ribeira. Vejo a minha mala com a faixa amarela que a identifica, a emergir da confusão, como uma bandeira adiada a assinalar o território do sonho. Agarro-a e encaminho-me para a porta onde, além de todos os receios e saudades, o futuro se abre de par em par. Chamo-me Soraia e sei que Macau também pode ser isto: o lugar onde o amanhã germina, embalado pelo desfolhar de incertezas, num caudal de histórias para contar.
Dora Nunes Gago, Floriram por engano as rosas bravas, Edições Húmus, 2022
Dora Nunes Gago é Professora Associada, Universidade de Macau.
(https://umac.academia.edu/DoraNunesGago)
https://jtm.com.mo/local/livro-de-contos-de-dora-gago-tem-inspiracao-macaense-asiatica/
https://revistacaliban.net/floriram-por-engano-as-rosas-bravas-c27fd9fc0111