Dos cárceres da ilha das Cobras, no Brasil,
a uma catarse por via da poética
Não se deve desconhecer que Tomás António Gonzaga, ao ser detido pela sua implicação nesse movimento, no mesmo ano, veio a pagar bem caro esse seu sentido transgressor e de coragem para a época. Ele foi um dos que, por ordens do Governo, foi transportado para os cárceres da Ilha das Cobras (Rio de Janeiro).
Poder-se-á imaginar as condições em que ele terá vivido aprisionado nessa llha. Restava-lhe aí, na ausência da liberdade, a catarse pelo amor, mesmo que algo platónico e distanciado, da mulher que, a partir dessa data, afastaria fisicamente, de uma forma irremediável, da sua própria vida (depois de romper o compromisso de noivado). Os biógrafos que se têm encarregue do seu exemplo de vida têm escrito que, nessa prisão, ele terá redigido em evocação dessa mulher assim amada – certamente que antes de se mdecidir pela anulação dos votos de casamanto com ela – uma boa parte dos poemas que vieram posteriormente a ser editados, em 1792, em Lisboa, na Tipografia Nunesiana, sob o título Marília de Dirceo
Terá havido uma relação (epistolar) directa do autor desta obra, contendo apenas 33 liras, quanto a esssa edição, junto da Tipografia Nunesiana, ou eventualmente por um mensageiro-intermediário ? Ao certo não o sabemos.
Quanto ao seu conteúdo, mais especificamente, Marília surge, na primeira parte, como uma pastora idealizada Na segunda parte, está patente, sobretudo, a vivência das ideias no âmbito do afastamento da sua amada, em resultado do seu encarceramento.
O grande problema que se levanta hoje é se a então prometida desposada do poeta, D. Maria Doroteia Joaquina de Seixas, terá tido a recepção – por parte de eventual mensageiro – de algumas das poesias de Gonzaga, a ela destinadas, remetidas desde o Rio de Janeiro, ainda na fase manuscrita (ou se, eventualmente, só veio a conhecer já a primeira edição de 1792). Foi posta ainda a circular, por alguma bibliografia disponível em torno deste malogrado escritor, que terá sido a própria jovem prometida, Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, quem terá escrito pessoalmente uma carta à Rainha de Portugal, em 1792, em que solicitava a superior intercepção régia no sentido de comutação da pena.
Talvez por alguma popularidade que já andava associada ao nome do poeta, inclusivamente em Portugal, esse pedido foi ouvido. Gonzaga acabou por ser sentenciado a uma deportação para a Ilha de Moçambique, no cumprimento de uma pena efectiva de dez anos. Era de facto uma sentença pesada mas, mais do que isso, era o desfazer de uma pretensa união amorosa que ocorria.
Tendo deixado o Brasil no primeiro trimestre de 1792, como sentenciado, na nau Nossa Senhora da Conceição e Princesa de Portugal, chegou à ilha de Moçambique, é hoje um dado incontestável, em 31 de Julho de 1792. Não muito tempo depois – e, até, em resultado da sua formação jurídica – aquele que anteriormente fora Ouvidor no Brasil, acabou por ser nomeado, por um Outro Ouvidor, Francisco António Tavares de Siqueira, “Promotor de defuntos e ausentes”. Em tais funções se ocupor, decerto, uns bons pares de anos (nessa terra onde, afinal, contraíu a doença de que mais tarde viria a falecer).
Mapa da região leste de Moçambique continental
e Ilha de Moçambique, segundo uma carta gravada
constante da obra de Kasper von Baerle (1584-1568),
Rerum octennium in Brasilia et alibi gestarum, sub Praefectura Illustrissimi Comitis, I. Mauriti Nassaviae & C. Comitis, Historia – Editio secundo – Clivis: ex Officina Tobiae Gilberling, 1660.
Foi nesta ilha, afinal, que ele viveu e onde veio a ser sepultado
(no convento de S. Domingos), presumiv. em Fevereiro de 1810
Do amor no plano platónico e das ideias
ao amor gonzaguiano no terreno do real
Um olhar objectivo – no plano das ideias literárias e da vivência de uma determinada realidade local brasileira da época – permite hoje ao historiador das ideias observar, mais distanciadamente, a vivência amorosa do poeta portuense e Ouvidor de Minas Gerais. O que ele terá sentido por Marília, na nossa modesta opinião, terá sido a vivência amorosa num plano não muito afastado do platonismo.
Ele cristalizou a imagem de uma mulher, inacessível e não próxima, que era bela, essencialmente no tocante à retórica literária. Não chegaram até nós os traços fisionómicos dessa sua Marília. O que sabemos é que ele na sua lírica imortalizou, conjugadamente, a beleza e a juventude de uma adolescente de 16 anos, mas não a mulher real, no seu desejo, na sua carnalidade, nos seus objectivos de vida.
A Marília, quanto a nós, não existiu em carne, mas sim em versos. Onde o Ouvidor agrilhoado foi encontrar a mulher, real e na sua carnalidade, foi no Moçambique. Aí é que se lhe ofereceu, uma outra esperança, a multiplicação do ser, mas também a sepultura.
Alguns dos traços mais marcantes também da sua vida em Moçambique foram objecto dos estudos do investigador brasileiro Adelto Gonçalves, matéria essa a que votou (sob a direcção de Massaud Moisés ) a sua dissertação de Doutoramento apresentada à Universidade de São Paulo. Perant e esse rigotroso trabalho – ao que escreveu o diplomata Alberto da Costa e Silva na respectiva edição – Adelto Gonçalves amplia, completa e rectifica as páginas iluminadoras que escreveu… Rodrigues Lapa” .
Algum tempo depois de chegar a Moçambique, Tomás António Gonzaga conheceu e caiu de amores por uma tal Juliana de Sousa Mascarenhas. Esta senhora, segundo veio a apurar Adelto Gonçalves, nem tão pouco foi filha de um próspero comerciante de escravos. Nem o próprio poeta, afinal, comerciou escravos nem impledmentou o desenvolvimento desse mesmo tipo de tráfico humano.
O poeta acabou por casar D. Juliana Gonzaga, em 9 de Maio de 1793 sendo provável que ainda nesse ano tenha nascido uma filha do casal, de nome Ana Mascarenhas Gonzaga. Pouco tempo depois, esta mulher deu-lhe um novo filho, Alexandre Mascarenhas Gonzaga.
Os biógrafos do poeta têm estabelecido que essa mulher era, naturalmente, uma «pessoa de muitos dotes». Ela era, porém, “analfabeta”, pois, quando casou, assinou em cruz a certidão de casamento (documento este que se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, secção de manuscritos, 1-46, 14, 10, certidão tirada na Ilha de Moçambique em 17 de Abril de 1850).
Acontece, porém, que esta D. Juliana já não representa, então, para Tomás António Gonzaga a mulher idealizada nas ideias de Platão, e daí posicionada no pináculo da distância amorosa. Ela apresentava-se, antes, como a mulher real, mais no concreto (comparativamente com a anterior pastora das suas letras brasílicas, desejada na carne, na sua carnalidade enfim. Com esta D. Juliana, terá vivido durante pouco mais de dezena e meia de anos, até à morte.
Não é lícito, como sempre temos sustentado, que com o amor a Juliana ele tenha atraiçoado (ou negado) o amor a Marília. Essa questão, hoje, nem se põe. O que sucedeu, a nosso ver, é que o poeta arcádico e dos sonhos encontrou na vida objectiva e na realidade moçambicana, o porto de abrigo que lhe faltava para que se possa hoje afirmar (na multiplicabilidade da sua carne e dos seus afectos): cumpriu-se o homem.
O falecimento de Tomás António Gonzaga pode situar-se hoje, com alguma seguranaça (sobretudo depois das pesquisas de Adelto Gonçalves), entre 25 de Janeiro e 1 de Fevereiro de 1810 . Seguindo uma prática regular na região, naquela época e sobretudo para homens que mais se destacavam, o seu corpo foi sepultado nessa ilha, no Convento quinhentista de S. Doming
os . Algumas décadas depois, por vicissitudes várias, com a destruição da igreja onde jazia, as suas cinzas foram feitas desaparecer.
Dois problemas
em torno da História da Edição
Quer no Rio de Janeiro, sede da Corte Régia, quer em Lisboa, a popularidade de Gonzaga, a partir de 1792-1793, não mais deixou de crescer. Em 1792, como se viu atrás, tinha sido lançada a primeira parte das liras de Gonzaga. Já em 1799, seria hipoteticamente lançada a II Parte dessa sua produção poética. Este problema tem feito levantar alguns problemas de natureza historiográfica.
Como historiador da Edição, podemos apenas registar aqui que, para certos autores, a publicação dessa segunda parte dos seus poemas ocorreu, em Lisboa, na tipografia Lacerdina, em 1811; para outros, ocorreu na Impressão Régia, em 1812. O Prof. Rodrigues Lapa – após cotejo dos textos hoje disponíveis – sustenta que é mais verosímil a segunda hipótese. Na biblioteca pertencente ao criterioso e exigente bibliógrafo brasileiro José Mindlin, existe a raríssima edição da obra de Gonzaga, Marília de Dirceo, que ele, no seu catálogo, afirma ter (ainda) saído no Rio de Janeiro, na Impressão Régia, em 1810 .
Frontispício e página com um poema da obra Marília de Dirceo¸ Primeira Parte. Nova edição, de Tomás António Gonzaga, de 1810,
(já após o respectivo restauro) ao que consta da data aí aposta
(Ficheiro: «Marília de Dirceo.jpg»)
Não distarão muitos meses entre a morte deste poeta em Moçambique, em Fevereiro de 1810, vítima de uma doença prolongada, e a referida edição da Impressão Régia, de que José Mindlin conseguiu adquirir um valioso exemplar.
Desde então, os mais variados estudos e interpretações – para além das próprias edições – foram votados à obra de Tomás António Gonzaga. Uma das edições que retemos da porventura sua obra mais conhecida, Marília de Dirceo, é a que ocorreu também em Lisboa, em 1824, na Tipografia de J.F.M. de Campos.
Frontispício da edição póstuma de Marília de Dirceo¸ de Tomás António Gonzaga, de Lisboa, 1824 (Ficheiro: «Marília de Dirceo 1824.jpg»)
Encontra-se a obra deste portuense já hoje suficientemente estudada? Não é essa, pelo menos, a nossa opinião. É às jovens gerações de investigadores – inclusivamente de historiadores luso-brasileiros das ideias – que tal tarefa, de tornar redivivo este poeta , continuará a impor-se.
(Lisboa, Novembro-Dezembro de 2010)
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(*) Do Autor: Manuel Cadafaz de Matos
Emérito Historiador Portugues,investigador com expressiva obra publicada,entre livros e ensaios.
Pertence à Academia Portuguesa da História e CEHLE (associação onde dirige, desde 1997, a Revista Portuguesa de História do Livro).
Obras Mais Recentes do Historiador:
2002: Obras de Damião de Góis Vol. I (1532-1538). Trabalhos de tradução e comentário. Fac-símile de cada edição princeps deste período. Leitura diplomática e versão portuguesa por Miguel Pinto de Meneses. Edição, introdução e notas de Manuel Cadafaz de Matos. Apresentação de Amadeu Torres. Lisboa, Centro de Estudos de História do Livro e da Edição – CEHLE, VIII (com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, do Ministério da Ciência e do Ensino Superior).
2003: A Emparedada na História da Cultura e numa edição quinhentista portuguesa desconhecida, Lisboa, Centro de Estudos de História do Livro e da Edição – CEHLE, X (com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, do Ministério da Ciência e do Ensino Superior).
2005: (Direcção editorial e estudo) A Aplogia do Latim In Honorem Dr. Miguel Pinto de Meneses (1917-2004) vol.I, Lisboa, Centro de Estudos de História do Livro e da Edição – CEHLE,
2008: Algumas Obras de André de Resende, vol. II (1529-1551), Lisboa, Centro de Estudos de História do Livro e da Edição/Edições Távola Redonda, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia;
2010: Obras Completas de M.C.M. – vol. I : Estudos Helénicos e Neo-Helénicos (CEHLE).
2010: Obras Completas de M.C.M. – vol. II: Fenomelogia, História, Edição e Teoria da Corporeidade (CEHLE).
2011: Obras Completas de M.C.M. – vol. III: Italica Monumenta Sinica (sécs. XVI e XVII)
(esta edição das minhas Obras Completas está em curso, com o apoio do Estado português)