lha-América
Degrau a degrau. Subir sem cansar e chegar a um patamar que nos deslumbra e cativa. Foi o que senti ao ler este que é o quinto romance de Almeida Maia. Ilha-América! Já tive ocasião de referir e não me canso de repetir, quando falo de ficção: um tipo de literatura que tem o seu público certo e seguro e que garante que uma obra desta envergadura não possa confinar-se às estantes da livrarias e leitores açorianos. Ela tem todos os ingredientes para a sua universalização e é a prova provada de que, com qualidade e criatividade, os acontecimentos, ao pé da porta, no mais puro regionalismo, podem alcançar a mais ampla projecção, sem tempo nem lugar. É aquilo que eu classifico de regionalismo universalizante.
Ilha-América é mais um importante contributo que enriquece um dos temas mais queridos da literatura açoriana: a emigração! Sonho multissecular, como multisecular tem sido a aventura de viver em ilhas, belas de extasiar, mas cadeias terríveis de miséria, distância e abandonos. Ao ler esta grande aventura ficcionada magistralmente por Almeida Maia, esse grande Mané, figura franzina e tímida, que se faz ao sonho no bojo do rodado de um avião, à memória me veio o grande Dias de Melo e o seu imortal “Pedras Negras”, Francisco Marroco, herói da “ilha que escorraça” e da “ilha que chama”, ou aquele também imorredouro “O Barco e o Sonho” do inesquecível Manuel Ferreira, com a casca de noz onde navegou o sonho de Vitor Caetano e Evaristo Gaspar.
E isto mesmo nos recorda o autor deste Ilha-América quando escreve que “a paixão pelo tema da imigração ilegal surgiu com a leitura do artigo “O Avião e o Sonho”, do jornalista Pedro Barros Costa”. De facto, nos sonhos açorianos, do barco ao avião vai apenas uma distância temporal, como se o voar fosse o navegar escrito no futuro.
Desde o Bom Tempo no Canal, – tão bonito aquele pedido de perdão a Nemésio pela irreverência do título – Almeida Maia jamais nos deixou de surpreender, com a sua capacidade de arquitecturar temas e enredos para os seus novos romances, como aquele “Capítulo 41 – A Redescoberta da Atlântida” que tive o gosto de apresentar em 2013, ou mais tarde o magnífico e intrigante “A Viagem de Juno”. Teias policiais, todas com os Açores em pano de fundo e todas com um estilo inconfundível de profundidade psicológica e conhecimento dos sentimentos e consequentes reacções em todos os momentos.
Onésimo Teotónio Almeida diz que a escrita de Almeida Maia é “ágil, incisiva e vivaz”. E está tudo dito aqui. Estas características aliadas ao profundo conhecimento, fruto de muita investigação, estudo e contactos, levam-no, por exemplo, e para falar apenas neste “Ilha-América”, a relatos ficcionados, mas de uma crua intensidade, nos interrogatórios da PIDE, em Lisboa ou em Santa Maria, onde Mané de tudo é despojado, na sua personalidade, “anestesia do espírito ofendido por uma besta”. Na barbaridade escondiam-se as aspirações reprimidas daquele círculo, amansava-se as feras desleais e lobotomizava-se os pensamentos conspurcados com as verdades que eles abominavam. Os homens tristes agem sem amor.” Que descrição! E recorde-se que Pedro Almeida Maia nasceu em 1979, um lustro depois do fim da abominável polícia, varrida pelos ventos de Abril de 74.
Posso mesmo assegurar que a forma como aqui se narram os interrogatórios e a organização do processo pidesco em torno a aventura de Mané, de Santa Maria às Bermudas, à Venezuela dos anos sessenta, a Lisboa e seu regresso, é um dos aspectos mais marcantes deste livro onde menos se consegue delimitar a linha que separa a realidade da ficção. Para mim, são páginas saltitantes de realismo, como se a noite negra da ditadura ainda nos atormentasse em pesadelo de que dificilmente se acorda.
Ainda há poucos dias e sobre este mesmo romance, escrevia o Professor Ermelindo Peixoto, com muita precisão: “Escrita clara e escorreita, de matriz identitária muito nossa, e refletindo a peculiaridade do ilhéu na busca de novos horizontes, na ânsia de superar uma realidade existencial castigada pelo isolamento e por um estado de espírito marcado por ilusões e desilusões, sempre com os olhos postos no outro lado do mar, este livro traduz uma ambiguidade sempre atual entre a vontade de partir e de ficar que não deixará o leitor indiferente aos determinantes históricos, geográficos e sociais da realidade matricial que apresenta”.
E Vamberto Freitas, com a mestria que caracteriza as suas análises literárias afirma que neste Ilha-América, Almeida Maia vai mesmo “à alma dos ilhéus destas ilhas, tornando-se um romance fundamental do nosso cânone, da nossa História, do nosso modo de estar no mundo a oeste, nessa terra de promessa e desilusões que sempre fez parte das nossas vidas. Trata-se da visão original e lapidar da nossa experiência como povo andarilho, que constrói novos mundos e faz da terra um espaço verdadeiramente universal”.
A força da escrita de Almeida Maia reside aqui mesmo, nesta sede de infinito que mora na mensagem que nos deixa, com a ilha a ser universo que busca um universo que seja ilha.
A América é assim: uma grandeza distante, num sonho tão perto e sempre presente. América que é Ilha, América que é Margem deste Rio Atlântico (Onésimo dixit), América que é cheiro e sabor, sonho e quimera. Por isso gostei tanto do título deste livro… e da sua capa (parabéns, Miguel Maia), malas à espera de avião que sobrevoa. E depois, depois é descer, degrau a degrau. “Aquele chão sobrenatural a aproximar-se, degrau a degrau, a Terra prometida ali mesmo, degrau a degrau, a vontade de a beijar a tomar conta de si… até que pisou a pista. Mané tinha firmado os pés no solo sagrado. Tinha chegado à América”.
E eu cheguei ao fim do livro, com a sensação de que aquelas 200 páginas, com edição Letras LAVAdas, tinham sido uma grande viagem durante a qual Almeida Maia me levou à Ilha de Santa Maria, nos anos sessenta, quando a ilha “era um mundo à parte. Era Portugal da ditadura, mas era um Portugal diferente. Era Açores, mas uns Açores diferentes. Era a ilha de Santa Maria, mas diferente das outras, diferente de si mesma, onde se vivia num tempo diferente… Era a América emprestada aos ilhéus… Ali, era a fartura dentro da penúria, a fronteira transparente. Ali, era a Little America”.
Mais um grande romance a enriquecer a literatura açoriana e que por ser açoriana não deixa de ser universal. O perigo de nos idolatrarmos não é maior do que a tentação de nos inferiorizarmos. Os escritores açorianos já deram provas de ter esconjurado complexos destes e agora, neste mundo globalizado, há condições para que livros como este “Ilha-América” possam ter a expansão que merecem, porque as ilhas nunca serão fronteiras, mas portas abertas à beleza de quem escreve assim.
Parabéns, caríssimo Pedro Almeida Maia! Com votos que a apresentação do “Ilha-América”, no dia 16 de Outubro, no Auditório da Biblioteca Pública, seja o merecido êxito. E já espero outro. Com gratidão pela citação das minhas “Leituras do Atlântico” que escolheste para a contracapa do livro.
Nota: O Artigo de autoria do jornalista Manuel José Santos Narciso foi publicado origialmente na coluna "Leituras do Atlântico", na edição de 11 de outubro de 2020 do jornal Atlântico Expresso. Ponta Delgada,Portugal.