Ilha Catedral
Ei-los, de novo, na rua. Saíram anteontem, os primeiros, e até ao início do tríduo pascal transformam esta ilha
do Arcanjo numa imensa catedral sem portas que não as do
coração de cada um, mas com o maior tecto que um arquitecto algum dia poderia sonhar: o fi rmamento!
São os Romeiros, os multiseculares romeiros que tudo
deixam por uma semana, para uma experiência de comunhão com Deus, com a natureza e com os irmãos. Só
uma força telúrica muito grande, só sentimento de reconhecimento de fraquezas e dependências, só a certeza de
saber que não estamos sós nesta caminhada pode levar a
esta decisão de caminhar e orar, de deixar de ser quem se
é para tudo partilhar e aceitar, no despojamento do eu e na
exaltação da comunidade!
Nada esperam, pouco precisam e muito dividem! Durante estas semanas quaresmais, milhares de famílias são
tocadas por este movimento. Quando se ouve ao longe, ao
despontar da aurora, ao sol de meio dia, ou ao declinar da
tarde, o som plangente das Avê-Marias, assoma-se à janela e pergunta-se quantos são e de onde vêm! Aí fi ca já
o compromisso de uma oração, de um pedido, de uma recomendação…. À noite, abrem-se as portas, espera-se no
adro e partilha-se refeição e dormida, numa multiplicação
de acolhimento que só quem vive pode sentir e explicar.
E não é fácil! Mas a verdade é que passam os tempos e a
tradição mantém-se. Modifi ca-se com o tempo, adapta-se,
mas não se perde.
E ei-los, de novo, pelas estradas da ilha, num ano difí-
cil, marcado por carências e desemprego que não se resolvem com oração, mas que infl uenciam muitas tomadas dedecisão, muitas promessas e muitos desejos de libertação e
desenvolvimento pessoal. Não vale a pena escamotear as
situações e todos sabemos que cada vez menos as romarias
são para as pessoas simples e do campo. O fenómeno tomou
tais dimensões, abrangeu todas as classes e profi ssões que,
bem pode dizer-se, é transversal a toda a sociedade. Num
tempo em que se liga cada menos aos dogmas, as romarias
apresentam-se como fonte de religiosidade individual, de
directo relacionamento com o Infi nito, sem qualquer tipo
de amarras e por isso mesmo ser romeiro continua a constituir uma opção pessoal, difi cilmente controlada ou absorvida por padrões de vida religiosa estabelecidos.
E disso não vem mal ao mundo, porque o sentimento de
uma semana de romaria é algo de tão pessoal e íntimo que
não pode ser julgado ou muito menos comandado, porque
a Fé não conhece fronteiras nem tempos e o Espírito paira
desde sempre no coração dos mais simples e humildes.
Como fenómeno social, as romarias são um caso de estudo e um compêndio de sabedoria. O acervo de orações
antigas que os nossos romeiros sabem, principalmente os seus mestres e contramestres, deveria constituir um trabalho de recolha, pois muitas delas correm o risco de se perder. Na maioria dos casos, desconhecem-se os seus autores, mas a sensibilidade mística dessas orações reporta-nos
a séculos de distância e ao mais puro franciscanismo onde
devem ter bebido a sua origem.
Durante estas semanas, estamos dentro de uma Ilha Catedral e como tal deve ser tratada, com respeito pela Fé e
pela tradição que mais um ano se repete, com uma sauda-
ção a todos os romeiros que caminhem por quem o não
pode fazer…
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Manuel Santos Narciso
Diretor-Adjunto Correio dos Açores
(*)Nota de Abertura da edição de 27 de fevereiro de 2012 do semanário Atlântico Expresso de Ponta Delgada,Açores.