Adoro ficar olhando a cidade da janela do meu gabinete, no nono andar, onde descortino uma visão panorâmica, de 180 graus. Isto já virou lugar-comum na minha escrita. Mas é a pura verdade: daqui sinto a Ilha e Florianópolis,que em dias domingos,santos de guarda e feriados amanhece silenciosa e lentamente desperta cheia de preguiça ou com uma grande ressaca do “festerê” de véspera.
Gosto de sentir os cheiros das plantas do Largo, da terra lavada depois da chuva forte, de aspirar a maresia, de observar os passarinhos que fizeram seu ninho na caixa protetora do ar condicionado e vão e voltam levando migalhas para seus filhotes.
Vejo, ao longe, um pedacinho do braço de ferro da Ponte Hercílio Luz, o cordão umbilical que nos une ao continente. Passagem e magia da ilha e da terra firme. Puro fetiche! A ponte e eu, uma cumplicidade antiga dos tempos de ir e vir, ponte de amores eternizados e de tanta saudade que o vento sul carregou para o mar-oceano numa longa travessia.
Gosto de olhar o Cambirela, a montanha azulada que lá do continente repousa como um gigante adormecido de olho na Ilha-mulher, na definição romântica e pícara do cronista ilhéu Sérgio da Costa Ramos: “Sempre soube que a Ilha é mulher, gênero bem feminino, espécie cheia de curvas, com seios e principalmente com ancas. Surpresa: dois umbigos, a Lagoa da Conceição e a Lagoa do Peri”
É uma deliciosa sensação de paz absoluta, de bem querer, de bem estar com a vida e com a “minha” cidade de Florianópolis” que me acolheu há 39 anos e que aniversaria neste dia 23 de março outonal, segunda-feira, de um sol dourado magnífico e um céu azul clarinho onde passeiam nuvens esparsas, branquinhas e tênues como algodão doce, prenúncio de vento nordeste caindo ao final da tarde.
A festa de aniversário começou ontem, com a reabertura da catedral metropolitana, depois de uma longa restauração. Um espetáculo pirotécnico, fogos de artifício de diferentes desenhos e muitas cores, explodiram no céu, iluminando a noite de lua minguante e poucas estrelas, celebrando este importante marco de história e de fé,patrimônio cultural de Santa Catarina. O templo erigido em louvor a Nossa Senhora de Desterro pelo bandeirante vicentista Francisco Dias Velho, em 1673 ou 1675 (há controvérsias) neste mesmo local, onde já existira uma cruz com data gravada de 1651, foram os fundamentos da póvoa Nossa Senhora do Desterro. Ali, no átrio da capela, morreria o nosso fundador, defendendo a sua família, do pirata inglês Robert Lewis no final do século XVII.
Dias Velho, em carta datada de 20 de abril de 1681, escreveu: “A terra é mais que boa quem disser o contrário mente. Digam que não podem estar onde não há gente e não digam que não presta a terra… Eu me contento muito com a minha sorte…”
Palavras proféticas! Duzentos e oitenta e três anos de Vila ou será de Vila-Ilha? Uma capital que se esparrama numa ilha de boa terra, flora fascinante e paisagem exuberante, das dunas da Joaquina, das quarenta e duas praias, restingas, manguezais e lagoas como a da Conceição. “Jamais a natureza reuniu tanta beleza,jamais algum poeta teve tanto pra cantar(…)Tua lagoa formosa, ternura de rosa,poema ao luar. Cristal onde a lua vaidosa,sestrosa, dengosa vem se espelhar.“proclamam os versos do Rancho de
Amor à Ilha,do poeta Zininho e Hino oficial de Florianópolis.
Florianópolis, um nome que atravessou o tempo, cativou a alma do ilhéu alojando afetos e construindo o imaginário insular. O fato de a Ilha abrigar a Capital do Estado de Santa Catarina, desde os tempos de Capitania, fortalece a relação Ilha-Capital e transmite aos seus moradores a consciência e o imaginário da insularidade.
A literatura alienígena e a iconografia colorida dos viajantes estrangeiros que se aventuraram pelas águas do Sul do Brasil, entre os séculos XVIII e XIX, são registros irrefutáveis que os nossos visitantes já se deslumbravam com a beleza da ilha idílica e a boa índole do nosso povo como anotou o viajante John Mawe em 1807 ao arribar na Ilha vindo de Buenos Aires. Em sua obra “Viagens ao interior do Brasil” (Londres, 1812) Mawe comenta sobre as belezas naturais da ilha, fala da organização da Vila de Desterro e da vida prazerosa de seus habitantes: “a cidade proporciona agradável retiro aos comerciantes afastados dos negócios, comandantes aposentados e outras pessoas que, tendo assegurado a sua independência, procuram apenas lazeres para desfrutá-la.“(p.52) lançando um olhar futurista sobre a vocação de Florianópolis que chega aos dias de agora como a cidade mais querida do País e o destino preferido de muitos brasileiros. E não só os nacionais caem de amor por Floripa. Mais de duas dezenas de viajantes estrangeiros deixaram relatos preciosos em sua passagem e estadia na nossa Ilha-Vila, mas nenhum deixou um depoimento tão pungente de amor e de ciúme por esta ilha-mulher quanto o navegador suíço-alemão Carl Friederich Gustav Seidler que por dez anos esteve no Brasil e entre 1823 e 1827 aportou 24 vezes em Desterro, no comando do navio “Caroline,” fazendo o transporte de imigrantes alemães chegados no Rio de Janeiro para colónias do Rio Grande do Sul. Cronista admirável percorreu a Ilha e o interior do estado em expedições exploradoras alcançando,inclusive, os contrafortes da Serra do Rio do Rastro,o planalto catarinense. Sua pena desenha na aquarela das palavras a formosura da ilha que chama de Formosa e completamente seduzido extravasa sua paixão: “que eu hoje desejasse que amanhecesse algumas horas mais cedo para que, quanto antes melhor, se me abrisse esse fabuloso paraíso do novo mundo. Não tive mais sono; impaciente como um amante cheio de saudade ou como um enfermo febricitante, esperei no convés pelo raiar do dia. Finalmente uma faixa estreita no horizonte prenunciou o iminente nascer do sol, o disco argentino da lua descorou, o verde escuro dos montes a pique, cobertos de mata, surgia cada vez mais visível e mágico;”in:Ilha de Santa Catarina: Relatos de Viajantes Estrangeiros nos Séculos XVIII e XIX,p.299 (Ed.da A.Legislativa-SC,1979).
Se hoje mantemos e celebramos a nossa herança cultural e afectuosa com os Açores devemos muito ao amor de Seidler,que muito contribuiu para que esta terra insular não passasse para as mãos da Inglaterra numa grande barganha vetada por José Bonifácio de Andrade, tutor de Pedro II.
De Seidler para cá muitos mais se enamoraram e revelaram seu amor: poetas, menestréis, artistas, saltimbancos, cantaram a sua beleza sem par eternizando-a na prosa, na poesia, no canto, na arte pictórica, cristalizando esse universo no bailado das palavras, na composição musical, na intensa linguagem plástica das formas, cores quentes e fortes, como neste poema Ilha e Mulher (1959), de Maura Senna Pereira, ela que carregou a Ilha dentro de si até o dia de sua morte, aos 88 anos, no Rio de Janeiro:
“Meu corpo é o teu imenso corpo de ilha/e minha alma invade as tuas entranhas participando da tua febre criadora./Meu sangue é o rasgão líquido dos teus rios/a linfa nervosa das tuas cachoeiras/a água matuta das tuas lagoas./Plantas rebentam de tuas carnes, de meus chãos,/ (…)/e sinto-me carregada da tua seiva e do teu pólen,/da glória dos rebentos/e do teu halo de conchas./…”
Não nasci na Ilha, mas a ela estou ligada por todos os laços de afetos imagináveis e por muitas lembranças da infância e das férias, na adolescência, passadas na casa da Dinda Josefina e da tia Volga. Não tenho a alegria telúrica dos ilhéus, mas a de ter sido aqui batizada. Primeiro na pia batismal da Igreja de São Francisco, com quase um ano de idade, depois nas águas de Itaguaçu, tendo por testemunha as pedras-bruxas. Uma união de amor
confirmada e fortalecida no tempo com a chegada dos filhos e da neta.
Na Ilha fui ungida, meu corpo faz parte do corpo da ilha por todo o sempre, como poetou Maura Sena Pereira. Gosto de me saber presa à Ilha por laços de amor. De sentir o seu abraço e o bolinar do mar que me carrega por outros horizontes onde está plantada a raiz matricial – os Açores – o espaço encantado que conheci em 1989 e me conquistou para sempre, apaixonada, amante.
Amo a Florianópolis de ontem, do velho Miramar, a Floripa de hoje e a de amanhã que será cantada por nossos filhos e lembrada por seus encantos e contrastes.
Capital cosmopolita, com praias lindas de águas calmas e cálidas, destino de milhares de visitantes, ou de mar agitado, cavado, reduto de uma juventude bonita, “sarada”, surfistas atraídos por suas ondas gigantescas, potentes e perfeitas, que convive com freguesias bucólicas onde o ritmo da vida segue o compasso das ondas do mar que buscam mansamente a carícia da areia da praia, alva esteira ou o beijo roubado no seio da vaga arfante. Gente hospitaleira, com seu linguajar cantado e ligeiro, uma sutil ironia, um jeito todo seu de ser, de estar, de conviver, de partilhar sabedoria guardada nas entranhas do mar e salvaguardada na memória coletiva.
Cenários de ontem e de hoje. Símbolos de uma cidade feminina, amada e reverenciada pelos que aqui vivem ou pelos que chegam e não querem mais sair enlaçados por seus “samburás” – um balaio de povo, de vida, de histórias, de memórias da nossa gente. Um território de pura magia, uma bruxa voluptuosa que se ergue do mar, não como abrigo de uma “velha cidade menina“, mas como a Capital-Ilha-Mulher sensual, linda e faceira. Cheia de segredos, misteriosa como a orquídea, sua flor símbolo.
Da minha janela aspiro a Ilha e Florianópolis, nesta linda manhã em que a cidade aniversaria e me presenteia com sua terra morena, seu marzão azul, seu sol dourado, sua magia cósmica a me envolver num jogo de eterna sedução, um convite explícito para um gostoso banho de mar, um grande abraço desta moça faceira, sempre pronta para dar e receber amor no seu imenso regaço.
Quem consegue resistir a uma prenda de tanta formosura?
Florianópolis é o nosso maior presente e todo dia é dia da Ilha
Faceira.
23 de março de 2009
Florianópolis – Ilha de Santa Catarina
Legendas e Créditos das Imagens:
1.Florianópolis – Av.Beira Mar Norte.www.imagensviagens.com.br
2.Lagoa da Conceição:www.guiafloripa.com.br
3.Ponte Hercílio Luz- Site PMF,A.Imprensa
4. Exposição Florianópolis_Surf, foto de Marcio David