Prefácio
Da Viagem Para Dentro
Vamberto Freitas
Imaginários Luso-Americanos e Açorianos: do outro lado do espelho é um trabalho originalmente dirigido a várias revistas universitárias e outras publicações assim como a diversos congressos e colóquios em que participei nos Açores, em Lisboa e nos EUA. A verdade é que, lado a lado a George Monteiro, a Onésimo T. Almeida e Diniz Borges, fomos desbravando este novo território de arte e afectos. Muito aconteceu desde meados de 90 quando começou a sair a prosa e a poesia de um bom número de autores luso-americanos que depressa se tornariam conhecidos entre nós e, de certo modo, por vias várias, redescobriram em directo e intimamente a sua terra ancestral, tornaram-se referência inescapável entre todos os que aqui os liam e estudavam, numa dialéctica entre duas línguas e tradições, mas tendo em comum a memória de intermináveis peregrinações das ilhas para o Novo Mundo. Para dor e desentendimento de alguns “nacionalistas”, a experiência açoriana transfigurada em literatura nunca mais poderá estar desligada do que estes autores acrescentaram, e de certo irão continuar a acrescentar, talvez inspirando a geração seguinte de luso-descendentes a dar continuidade ao pequeno mas poderoso cânone já inegavelmente existente. Quero dizer, o presente trabalho que aqui vos apresento já contém o suficiente para que outros e eu próprio, sem muita demora, façamos o esforço imenso de não deixar em branco todos aqueles luso-americanos (e canadianos) que merecem atenção, registo crítico, para que façam parte de uma cultura literária viva que é a nossa. Sem esta atenção vital, permaneceriam na penumbra entre nós, e isso seria a maior injustiça cultural que poderíamos cometer ante tanta obra de grande qualidade e significado para um povo espalhado entre duas nações como é o nosso. Não há mais fronteiras, e os passaportes nacionais atrapalham cada vez menos na movimentação entre países amigos, historicamente interligados desde há séculos. Do mesmo modo, os que se habituaram a literaturas “nacionais” terão cada vez mais dificuldades em separar, em catalogar, a escrita pós-modernista num mundo globalizado. Nabokov era um escritor russo ou americano? Salman Rushdie é um escritor indiano ou britânico? Aliás, foi do seu Imaginary Homelands: Essays and Criticism 1981-1991 que tirei emprestado o título do meu primeiro capítulo aqui, “Pátrias Imaginárias”. Katherine Vaz e Frank. X. Gaspar são só escritores norte-americanos ou, especialmente quando traduzidos para imagens e metáforas profundamente nossas, não serão também escritores portugueses ou açor-americanos? Na verdade, pouco importará os nomes que lhes chamemos, a estante onde os arrumamos: aí estão eles a comunicar em directo connosco, e só perde quem não os ler ou se aproximar dos que nos devolvem outros mundos e mundividências que são também nossos, são de todos. Nem os que nunca partiram desta terra se livraram ou livram do que o Novo Mundo nos fez, e sobretudo do que nos proporcionou em sucessivas fases da regeneração (salvação) da nossa gente.
Existe em toda escrita luso-americana sucessivos regressos à nossa ancestralidade por parte de narradores e personagens, regressos feitos pela imaginação e mítica das histórias que pais e avós foram transmitindo aos que depois tudo transfigurariam na sua escrita. Outros ainda entrecruzam tudo isso e encetam um diálogo com alguns dos nomes canónicos da literatura portuguesa, particularmente Camões, Fernando Pessoa e Eça de Queirós no caso de Frank X. Gaspar e Katherine Vaz. Lara Gularte, a poeta californiana, na ausência de informação concreta dos seus antepassados, escava a própria memória, olha uma foto ou visita um sítio, inventa e reinventa o que terá sido a vida dos seus no oeste americano. Por outro lado, o quotidiano da vida na terra nova torna-se vivo e significante entre todos eles, num fascínio simultaneamente elogiativo e irónico, dramático e cómico. Como referência a todo este historial de e/imigração em que vida dos nossos se desenvolvia e enraizava em comunidades mais ou menos isoladas mas recusando sempre a separação absoluta do país e cultura de que passavam a fazer parte, o cenário quase sempre incluía o recurso à religião católica, num misto de crenças piedosas e profanas, a continuidade da pátria-mãe também deste modo assegurada entre todos eles. Quando os lemos, em inglês ou sobretudo em tradução, dá-se sempre o tal “choque de reconhecimento” melvilleano, mas neste caso um “reconhecimento” íntimo, como se finalmente reencontrássemos uma parte da “nação” perdida, mas nunca esquecida. Todos eles, na sua prosa e poesia, já reconhecida nos mais variados meios literários norte-americanos e na própria academia, trazem-nos estas “notícias” de como foi a partida ancestral, de como se sobrevive inteiro/a numa nação imensa de língua e culturas por vezes radicalmente divergentes da nossa. Quando um desfile do Espírito Santo passa orgulhosamente em ruas anglo-americanas e de outras etnias naquele país, num colorido que tem tanto de alegria como de solenidade, e todos se quedam em silêncio num gesto de respeito e surpresa, sabemos quão fortes foram as raízes que nos mantiveram como grupo nacional totalmente integrado, sem que nunca tivesse deixado que violassem o seu mais profundo ser. Eis aí o grande testemunho contundente e indelével que nos passa a melhor literatura luso-americana.
Estou perfeitamente consciente das grandes ausências nestas minhas páginas, mas um livro deste género não pode ser exaustivo, tendo também os seus limites de espaço. Nalguns casos terei ainda de abordar alguns autores pela primeira vez; noutros, já os inclui em livros anteriores. Dois exemplos: dos EUA, entre outros, Julian Silva é incontornável, assim como o serão Art Coelho, Darrell Kastin, ou ainda Sue Fagalde Lick; do Canadá, depois de Erika Vasconcelos, cujo referencial está situado no seu país natal e no continente português, surgiu com força Anthony De Sa com o romance Barnacle Love, recentemente traduzido e publicado pela D. Quixote (Lisboa) com o título de Terra Nova. Este, sim, tem tudo a ver connosco. Tenciono a todos eles regressar brevemente. Numa entrevista à revista Provincetown Arts, quando me perguntaram o porquê da minha dedicação à literatura luso-americana, respondi que depois de ter passado uma boa parte da minha vida a ler, estudar e a escrever sobre literatura açoriana e de imigração dei-me conta de que através da escrita desta geração de luso-americanos (os que estão a resgatar toda a história da nossa vida no outro lado Atlântico) eu combinava os meus dois mais significativos e significantes mundos, os Açores e a América, num acto contínuo de melhor me entender a mim próprio assim como a nossa experiência de vida bipartida. É “a viagem para dentro” de que falava Edward W. Said, depois de termos quase sempre andado prolongadamente entre os mundos e os textos de Outros.
Ponta Delgada
30 de Agosto de 2010
Créditos: Arte capa Álamo Oliveira
foto: Eduardo Pinto Bettencourt