Manuel Vavô
Manuel “Vavô” não casara, era pouca cabeça para chefe de família, não tinha aqueles carinhos de mulher que ajudam um homem a viver com mais decência: comida a tempo e horas, o calor de uma caminha aquecida por outro corpo também, uns cuidados de águas quentinhas, para lavar as pernas doridas de trabalhar, e álcool aquentado numa lata de lustro posta sobre o candeeiro, como a mãe fazia ao pai em dias de mais estafa; umas sêmeas de emplastro ou pão em vinagre quente, para mazelas de estômago; roupa lavada e corrida para vestir ao Domingo. Nada, andava aos tombos da fortuna e da aguardente, que lhe era sustento e remédio mais que tudo, que lhe enganava tristezas e sossegava desejos. Por isso trabalhava conforme o apetite, mas, se estava em maré de o fazer, era homem de se contar com ele todo. Só não era de fiar para tarefas aprazadas com rigor. Se lhe dava a moleza da solidão, ficava-se por ruas e tabernas enquanto houvesse uns vinténs para aquecer o estômago, que só quando a fome era de mais ele entendia que lhe doía de fome. Numa noite em que ficara sem ceia, Manuel “Vavô” sentiu cheiro de petisco no “café”do José Virgínio, que tresandava a temperos de violentar paladares, apesar de a porta estar fechada por recato dos convivas. Lá dentro só homens de respeito, ainda que capazes de perder tanto o tino na pinga quanto o Manuel que os ouvia nas risadas da festança. Bateu à porta com algum receio e certa expectativa. Veio abrir o guarda Silva, que espalhava bazófias em disfarce de sabido e voz de vogais abertas e sílabas inteiras. Era uma figura que se pretendia imponente, incapaz de um desalinho, rigoroso no cumprir das leis. Viu quem era e mandou que desaparecesse.
Manuel “Vavô” insistiu. Teimou uma segunda e uma terceira vez, ao menos uma isca e um copinho de vinho. O guarda cansou-se da teima, e para que o outro não porfiasse agarrou num cabo de vassoura e foi-se contra ele. Era mesmo para bater! Manuel “Vavô” fugiu com todas as forças, e o guarda abalou no seu encalço. Subiram a rua da Igreja em correria de fúria e de medo, voltaram à esquerda no Caminho do Concelho, arfaram pelo Penedo fora até à Fonte Velha. Aí, ao entrar a canada, o carro de bois do Guilherme avivou a coragem do perseguido e deu-lhe uma razão mais forte: um fueiro! Pegou nele e voltou-se contra o guarda que não desistia de querer zurzi-lo. O perseguidor deu meia volta, mais veloz que Veloso a fugir do bando negro. Desceram o Penedo num ai, o Caminho do Concelho como dois foguetes, a rua da Igreja como se tivessem lume no rabo. E foi nesse imprevisto de se ter voltado o feitiço contra o feiticeiro que os amigos dessa noite de farra, que esperavam à porta a solução do combate, receberam a salvo, e com chacota dissimulada de um espanto divertido, o soldado vencido pelo argumento da força.
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* In: Daniel de Sá, Sobre a Verdade das Coisas, Junta de Freguesia da Maia, São Miguel, Gráfica Açoriana Ltda.2ªEdição (Revista e Ampliada),2000.
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Daniel de Sá
Luiz Antônio de Assis Brasil
(escritor brasileiro,professor, gaúcho-açoriano)
O Daniel de Sá não é apenas o Daniel. Ele é, ao mesmo tempo, a síntese de um tempo, a metáfora de uma cultura, a metonímia do bom cidadão e, ainda por cima, é um grande artista e um formidável ser humano. Seu olhar, por vezes, parece distraído. Engano: ele pensa no que irá responder a seu interlocutor; pois o Daniel tem ainda uma virtude rara, em nossos dias: ele sabe escutar. Tudo o que lhe dizem merece seu maior respeito. Nem sempre concorda, mas sabe expressar seu ponto de vista suaviter in modo, fortiter in re.
O escritor? Bem, não serei eu a dizer o óbvio. O Daniel é bom em tudo, seja na poesia, conto, novela, ensaio, crítica. Todos gostamos do que ele escreve, e cada qual tem seu Daniel de cabeceira. No meu caso é o Ilha Grande Fechada; o leitor terá outro livro. Como escritor, há a unir sua obra uma profunda humanidade, e uma preferência pelos desardados, pelos deslocados, como no tristemente suave O Pastor das Casas Mortas.
O Daniel aceita apenas os dogmas da Igreja – porque em sua vida pessoal, é um homem sem proibições. Não julga, não condena; ele conhece a alma humana e seus motivos. A todos absolve e abençoa. Deus irá encarregar-se da justiça.
Talvez o único senão seja uma de suas grandes virtudes: não sai da Maia – ou sai o mínimo para que não o acusem de eremita. Seu mundo, entretanto, não se limita à Maia. Ele sabe tudo do mundo, sabe mais do que nós. Na verdade, todos os invejamos de boa inveja: nós gostaríamos de chegar a esse grau de desprendimento e de concentração.
Impossível não destacar, sob o título de faits-divers, sua imensa destreza em imitar outros escritores. Excelente escritor que é, capta com fulminante inteligência os cacoetes linguísticos de uma data de autores, dando preferência aos clássicos. Eu mesmo o importunei, pedindo-lhe que escrevesse um poema ao estilo dos árcades, e não é que ele o escreveu? Está lá no meu livro Música Perdida. Faz isso com muito gosto e um sorriso.
Alguém tão completo e superior não se deixa seduzir por homenagens, ainda que merecidíssimas. Sei que as recolhe com sua histórica boa-educação; na verdade, ele gosta mesmo é de homenagear os outros. Mas agora ele precisa aceitar essas palavras de elogio, porque estas são são justas e de um amigo, o qual está a representar uma legião que o tempo só aumenta.
Porto Alegre, Brasil, Outono de 2010.
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