Daniel de Sá:
Partir e Ficar da Melhor Maneira
Vamberto Freitas
(escritor,crítico literário,professor, açoriano da Ilha Terceira)
Foi uma belíssima notícia, a de que quatro grandes escritores açorianos iriam receber este ano uma condecoração da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores: Daniel de Sá, Álamo Oliveira, Eduíno de Jesus e Norberto Ávila. A escolha não poderia ser melhor, e o seu significado não deverá passar ao lado de ninguém, especialmente por parte daqueles que sempre prezaram a intervenção literário-artística no nosso meio. Suspeito que não somos tantos assim, tal a persistência de complexos e da pequenez de pensamento, mesmo entre as gerações mais novas que já se deveriam ter libertado de muitas amarras supostamente “teóricas” e “ideológicos”, sabendo como devem saber que ninguém “parte” para lado nenhum sem primeiro perceber as origens do seu berço natal, e o seu respectivo lugar no conjunto global dos povos, ninguém mais entre os outros se interessa ou quer saber de quem não se conhece a si próprio. Os quatro escritores que agora recebem o Reconhecimento pelos legítimos representantes do povo açoriano são de facto emblemáticos do melhor que entre nós se escreve, representam a Arte que mais profundamente nos retrata e nos devolve a nossa identidade–ou identidades. Uma literatura sem raízes geográficas precisas e cultura própria só diz respeito aos extraterrestres, supõe-se. Ao “premiar” estes escritores dos Açores, a nossa Assembleia reconhece também toda uma Geração, todo um combate civilizado em prol da dignificação do nosso mais profundo ser como portugueses insulares. Falta só agora curar outra miopia aguda no nosso país: incluir estes e alguns escritores das ilhas (Madeira, inclusive) contemporâneos nas “canónicas” antologias literárias ditas “nacionais” mesmo na sua parcialidade ou incompletude. Parabéns, Meus Caros Escritores. Só os invejosos de sempre dizem que estes momentos não têm importância, ou pecam por isto ou aquilo.
Da substancial obra de Daniel de Sá, e para contrariar o “espírito do tempo” que vivemos nestes dias do Vazio, recomendaria dois dos seus primeiros livros: as crónicas/contos de Sobre a Verdade das Coisas e a esplêndida ficção de Ilha Grande Fechada.
A ternura das suas crónicas/contos aproxima-o definitivamente das suas gentes em redor da Maia (São Miguel), mas define perfeitamente o que viria a ser a temática e estética dos seus romances que se seguiriam ao longo dos anos. Em Sobre a Verdade das Coisas, Daniel exterioriza todo o seu humanismo cristão, o riso empático e de companheiro de estrada ante as excentricidades humanas dos seus seres aí “contados”, nunca deixando que a sua leve e fina ironia interfira com, ou menospreze a beleza e os momentos amenos dos que vivem numa pequena comunidade que, por imperativo histórico, olha sempre para além de si e reclama o mundo inteiro como pátria dos seus, dos que navegaram e navegam em busca de outras vidas. São os primeiros livros que definem para sempre o espaço predilecto ou inevitável de qualquer escritor.
Quanto a Ilha Grande Fechada, que dizer? É um dos nossos grandes romances, que para além de transfigurar ou reinventar todos os que pululam no universo ilhéu de Daniel de Sá, que vai da Maia à Europa Continental e à América do Norte, presta a mais comovente homenagem a muitos outros escritores açorianos do seu tempo, a metaficção contribuindo aqui também, uma vez mais, para a aproximação dupla e constante do autor: a sua gente vista na proximidade física, e depois imaginada num palco mais vasto, olhada ora num jogo de sueca em casa ora na sua ansiedade existencial quando caminha em solidão pelas estradas da sua sobrevivência local ou pelas que imagina levando-o um dia ao sonho noutras geografias ao mesmo tempo desejadas e temidas. Eis o povo açoriano no seu multissecular dilema de ficar partindo ou de partir ficando, da melhor e da pior maneira. Eis aqui o universalismo da nossa literatura, eis aqui o coração humano no seu contentamento momentâneo ou na sua angústia perpétua. Quem leu Ilha Grande Fechada sabe do que falo e relembro dessas páginas antológicas.
Parabéns, meu caro Daniel de Sá. Há muitos anos que não escrevia sobre a tua obra. Mas a ocasião dita-nos certos deveres—e prazeres. Relembra-nos sobretudo do que nos é importante e essencial, do que equilibra o desespero dos tempos e a crença no eventual triunfo do que nos une e nos dá sentido à vida. O resto, todo o resto, poderemos e deveremos dispensar.
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*Daniel de Sá, Sobre a Verdade das Coisas, Junta de Freguesia da Maia, São Miguel, (s/d).
_ Ilha Grande Fechada, Edições Salamandra, Lisboa, 1992.
Crédito Imagem: Lélia Nunes