FAUNESA
I
Conheço a tua história. Numa gruta
de espessa floresta, tal como o escopro
de um artista te fez em pedra bruta,
vives ignota. É certo que o teu corpo
pelas ruas da cidade às vezes erra
de noite, inquieto, perturbante e casto.
Porém, jamais um homem viu o rasto
de teus passos olímpicos na terra.
Só eu conheço as ruas e as praças
onde, em noites de lua nova, passas
nua, de flores de giesta, amarelas,
enfeitada, e, curiosa, ao casario
espreitas, pelos vidros das janelas…
Pávida, como um animal bravio!
II
Quando é lua nova ou o luar se atrasa,
eu pressinto na voz do vento a tua
voz – um apelo na noite sem lua –
como um cício de folha ou rumor de asa.
E ao impulso do sangue que me estua
nas fontes e no coração em brasa,
como um sonâmbulo, eu saio de casa
e vou, transponho o rio que debrua
a floresta , entro na espessura, espreito
aos sítios onde passas, sempre, à meia
noite, assustada e esquiva, lesta, rente
ao maciço de feno onde me deito…
e espero, ansioso, que tu venhas, cheia
de amor, lamber-me as mãos, timidamente.
III
Os meus dedos percorrem o teu rosto,
torneiam-te a garganta, os ombros glabros.
E os teus cabelos negros, longos, abro-os
na fronte e envolvo neles o teu busto.
Teus lábios rubros a pedir que os beijem …
E tão puros e ingénuos que nem sabem
beijar! Os teus pequenos seios cabem
nas minhas mãos em concha, que os protejem.
A tua cinta estreita quase a abranjo
com o anel das minhas mãos em arco.
– Este quadro, que não esqueço, abarco-o
com um olhar… E digo-te palavras
que não entendes, muito embora abras
de espanto esses teus grandes olhos de anjo!
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*Eduíno de Jesus,In:Os Silos do Silêncio Poesia(1948-2004),Parte II Inéditos & Dispersos, Biblioteca de Autores Portugueses,Imprensa Nacional-Casa da Moeda,Lisboa,2005:242.
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Toada por um poeta vivo
Onésimo Teotónio Almeida
(escritor,ensaísta,professor,açoriano da Ilha de São Miguel)
Roubo o título em paráfrase a um poema de Eduíno de Jesus dedicado à memória do poeta Afonso Duarte, com quem ele conviveu nos seus jovens anos de Coimbra. Todavia, neste caso, quero vincar não serem só os poemas que desejamos ter connosco. Porque estes são finos, elegantes, profundos, perspicazes como só pode escrever um grande conhecedor dos mistérios da língua e da vida, com a cultura vastíssima que ele tem. Perpassamos os olhos pelo veludo suave desses versos e sentimos a delicadeza de sentimentos e a argúcia de espírito do seu autor. Mas sera também impossível não pressentir que eles são produto de uma humanidade, de um modo de estar e de ser que nos fazem remontar a um mundo bem mais sólido do que aquele em que hoje nos movemos, pelo menos esteticamente mais ordenado, mais elegante. O autor ressalta neles como alguém que apetece conhecer e, quem o conhece já, reconhece que de facto ali transposto para o papel está inteirinho o código genético da fonte de onde proveio.
Por isso os amigos de Eduíno de Jesus não querem ficar apenas com os versos dele. Querem estar e ficar com ele, o homem que além da gravata anda agora de bengala, charmosamente, a fazer-nos duvidar se sente dores ou se é apenas questão de estilo. Que fique atrás também quem fez os versos. Não descansaremos em paz se assim não for. O nosso comum amigo e seu admirador George Monteiro costuma dizer que dos escritores e poetas devemos ler-lhes os livros mas em regra não convém conhecê-los. No caso de Eduíno de Jesus, não conhecê-lo é perda grave. Eduíno de Jesus é a presença de outro tempo, de outro modo de ser, de outro tipo de figura cultural que seria tão bom preservar não apenas no museu. Se os silos do seu longo silêncio afinal estavam repletos de versos tão ricos, quem o conhece de perto sabe que igualmente rica foi sempre a sua palavra, o seu vastíssimo armazém de conhecimentos de onde se está sempre a aprender.
Caríssimo Eduíno, roubo de novo palavras aos teus próprios versos para terminar esta breve saudação escrita em Providence na manhã desta homenagem tão oportuna, que Toronto te presta por iniciativa da nossa amiga Irene: as tuas palavras não se gastam e podes continuar com elas a repetir a definição das coisas, pois não são nada iguais ao que vem nos tratados e dizem mesmo o indizível.
Não é propositado o paradoxo, mas retiro-me com o teu “Intróito”:
Não responder nunca foi a Tua sabedoria. Se cada um entende a mesma luz do dia à sua maneira, a tua, quando a gente a vê, quando a gente a lê, parece sempre mais luminosa do que a nossa. Por isso ela ilumina a nossa cegueira.
Um abraço enorme até ao teu próximo e-mail quando chegares a Lisboa. O abraço é estereofónico porque também da Leonor, que partilha tudo o que aqui vai dito e até deixou aqui e ali um toque seu. E vai outro abraço para os organizadores desta justíssima homenagem.
Nota: Texto de saudação lido na do livro “Os Silos do Silêncio” em Toronto,2005
Crédito fotos: Eduardo Resende, Açoriano Oriental,out.2009