Salvador Dalí, “The persistence of memory” (c.1931)
INVENTÁRIO – 13
Se um dia eu der por findo enumerar
o que é passado, nunca terei dito tudo:
ficam lacunas, brilhos, súbitas memórias
que num ápice vão como voltaram
para onde o caos
fez do peito um abrigo de inquietas
vibrações, cílios cegos e matéria
de resplendores
ou de inquietações escuras.
Toda essa massa
respira lentamente em letargia,
e dela às vezes surgem fotos
tremidas pelo tempo:
a infância e a adolescência nas
ruas do esquecimento
por onde vagamente eu caminhava;
os rostos femininos
que permanecem virgens em seu corpo
e que não fui capaz de resguardar
e salvá-los em mim do anonimato:
desperto-os quando calha,
tão fugazes no vento que se apagam
sem notícia nenhuma,
de regresso ao seu sono de anos;
e, mais tarde,
também os sítios e a gente que somei,
mal reparando agora neles
e esquecendo que foram vida,
contudo acrescentando-me
de imagens e seres que não posso
enumerar. E se hoje
são apenas um lastro de palavras
e fotos esquecidas,
toda essa gente anónima, que hiberna
lentamente em seu sono, pelo menos
gerou o tom e a luz
nas folhas do inventário já escritas.
Nuno Dempster,
Dispersão, Viseu, Edições Sempre-em-Pé, 2008.
Nuno Dempster (1944), Engenheiro, poeta, nascido em Ponta Delgada, ilha de São Miguel, reside em Viseu.
Source of Painting: http://www.artquotes.net/masters/salvador-dali/the-persistence-of-memory.jpg