—
“Já não vem ninguém?” – mas que raio de pergunta será esta que vejo impressa, como se fosse verdade, na capa de um livro, belo na forma e no conteúdo, que agora me pedem para apresentar aqui?! Mas como é que pode já não vir ninguém – se esse livro que me arpoa com tal pergunta é um dos livros de poesia mais habitados que me tem sido possível ler nos últimos tempos? A gente folheia-o, lê-o, relê-o, torce-o, retorce-o – e o que nele encontra são pessoas: primeiro, claro, o Sidónio, que nele pôs a sua voz; logo seguido do Daniel de Sá, que se queixa do mesmo que eu (afinal, todos nós viemos e estamos aqui…); e depois, espalhados página a página, entre dedicatórias e poemas em verso e em prosa, o poeta lá colocou familiares, amigos, e, com uma profundidade que comove, o seu avô baleeiro, Manuel da Papuda – o homem que, naquela cena magnífica na qual, depois de ter sido levado por uma baleia, vemos a sair do mar como granada disparada por um submarino, de chapéu abeiro ainda na cabeça, é a síntese da força e da braveza dos velhos baleeiros do Pico; e todas aquelas palavras, lembranças, apontamentos, referências de outros lugares e gentes, e mais as subtis reticências que nos dizem de todas aquelas pessoas que fizeram do Sidónio Bettencourt o homem vestido de poeta que nos chega por meio deste livro… Tudo isto é gente, tudo isto, afinal, são alguéns.
“Já não vem ninguém”?, pergunta ele, afirmando.
“Vem sim, e traz gente com ele!”, apetece-me responder.
Gente que vive num livro que é uma casa: a casa de origem, directa ou afectiva, transfigurada na ilha do Pico que é, para todos os açorianos, a verdadeira ilha-mãe – porque é aquela que, tal como a conhecemos ainda hoje, melhor representa o que sejam ilhas vulcânicas como as nossas: uma montanha que define o mar de onde emerge – porque, ao contrário do mar que é finito, as linhas ascendentes do Pico, se projectadas ao infinito, cruzam os céus como um farol de sinalização, nele se perdendo mas nunca terminando (lembrando Teilhard de Chardin e o seu “tudo o que sobe, converge”), o que contraria as palavras inspiradas, mas de curtas vistas, de Chateaubriand, que lhe chamou “um inútil farol da noite, sinal sem testemunha de dia”, indo antes inspirar-se na definição certeira de Raul Brandão, para quem o Pico, “negro e dramático, roído da cinza que há-de acabar por devorar seres e coisas” se apresenta “a prumo no céu, com a carcaça da catedral ao abandono na praia”.
Felizmente que a profecia de Raul Brandão quanto à ilha-montanha que um dia há-de devorar seres e coisas ainda se não concretizou; pelo contrário, e ao arrepio da sua humilde demografia, vemos a cada dia saindo daquela ilha – e afinal, destas ilhas todas – seres e coisas que daqui partem para povoar o mundo, seja nos navios baleeiros que perseguem as Moby Dick‘s deste mundo, seja nas rotas da emigração, seja na criação literária, seja ainda na enorme capacidade de adaptação a outras latitudes e longitudes, sejam elas geográficas e culturais, como tão bem vemos representado na inovação linguística dos baleeiros do Pico que Nemésio transcreve em Mau Tempo no Canal sob a já portuguesíssima palavra arioche para reproduzir o Artic Ocean dos americanos.
Das nossas ilhas partem pessoas que renomeiam o mundo. Porque, como diz o poeta, “à ilha chegaram povos. da ilha partiu o povo” – pois aquele que daqui partiu já era muito outro do que era quando aqui chegou, e levou consigo tudo aquilo que, enquanto por cá viveu e frutificou, foi construindo no trabalho subtil e diário das pessoas que recriaram as ilhas como se fossem os fios das rendas do mar.
Uma dessas pessoas há-de ser o Sidónio Bettencourt – uma voz que todos nós já tão bem conhecemos dos programas da rádio e da televisão, mas que cada vez mais teremos que conhecer das páginas dos livros. E das páginas deste livro em particular, cuja leitura me criou a sensação de me encontrar num recinto vasto mas fechado – a tal catedral de Brandão? – onde se escutam vozes e vozes, cada uma com seus timbres, forças e significados, que falam das suas memórias, dos seus sentimentos, dos seus eus e dos seus tus, numa afirmação de colectiva solidão, de abertura encerrada, de grito calado – como almas que se definem pelos corpos que as transportam.
Pessoas, emoções, memórias. Factos, circunstâncias, gestos – que “só prevalecem se forem inteiramente vividos” (poeta scripsit). Melancolia do tempo perdido e jamais reencontrado, da ilha que se perdeu nas distâncias do mundo, do homem que resiste apenas por uma razão: porque há que resistir, porque há que morrer “fecundo de tanto mar”, porque há que “ser onda e lava a cada momento”. É disto, afinal, que fala este livro de título tão enganador como Já não vem ninguém. Trata-se, porém, de um daqueles enganos que com a verdade se fazem: depois deste livro, por poucas mais pessoas teremos que esperar para nos entendermos sobre aquilo que somos enquanto açorianos com um pé na ilha e o outro no mundo, e que num tão curto espaço de tempo lográmos edificar uma identidade que se aqui nos afoga, nas terras largas nos faz respirar.
“Meio milénio de existência sobre tufos vulcânicos”, escreveu Nemésio em 1932, “por baixo de nuvens que são asas e de bicharocos que são nuvens, é já uma carga respeitável de tempo, – e o tempo é espírito em fiéri. Mais outro tanto, e apenas trocaremos metade da memorialidade de Vergílio.
“Somos portanto, gente nova. Mas a vida açoriana não data espiritualmente da colonização das ilhas: antes se projecta num passado telúrico que os geólogos reduzirão a tempo, se quiserem… Como homens, estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar.”
Sim, meus amigos, ao contrário do que diz o poeta, que neste livro se revela como uma destas sereias a que se referia Nemésio, eis que vem mais alguém nestas nossas barcas de lava e de palavras, e alguém com palavras: Sidónio Bettencourt, poeta encartado, que a alguém canta “por todos os cantos até ser dia”. Será mulher? Será ilha? Seremos nós todos?
Ou será este livro, afinal, a contraprova do “sinal sem testemunha de dia” a que se referia Chateaubriand – porque é, sem sombra de dúvidas, uma testemunha forte, que mais não seja pelos ecos da memória que nos traz, de uma “vida vivida em terras de baleeiros” (Oh, Dias de Melo…) – sabendo nós, como sabemos, que a terra dos baleeiros não é o Pico. Somos nós, de carne e pedra (Nemésio), mas também de palavras (Sidónio Bettencourt).
Luiz Fagundes Duarte é Doutor em Linguística Portuguesa (1990) pela Universidade Nova de Lisboa, de que é Professor.