Quando os rapazes construíram uma enorme plataforma, a levaram para o caminho em frente da minha casa e, de todos os cantos e recantos da cidade, afloraram à nova pista de skateboarding, tu tiveste o teu primeiro ataque de fúria que eu compreendi perfeitamente. Já bem entrada nos anos, querias e precisavas da tua paz e do teu sossego. E a enorme e oca plataforma, martelada por uma dúzia de mariolas de músculos de ferro em cima das skateboards, tabuões com rodas, e dando gritos de fazer arrepiar peles-vermelhas dos filmes de Hollywood, era mesmo de arrepiar. Vieste à minha casa, implorar-me que eu interviesse. Eu disse-te, o mais amigavelmente possível, que falaria com eles, que lhes pediria que limitassem as suas actividades a umas quantas horas por dia, sobretudo quando os vizinhos não estavam em casa. Certifiquei-me sobretudo de que tu não estarias, pois, professora que és só à tardinha, por volta das 4:00, regressavas a casa. Mas aquele dia, a que se seguiram outros dias, tu não tinhas ido trabalhar. E ainda não tinhas as adolescentes, as tuas filhas que com tanto carinho e amor havias trazido da Índia: primeiro a Ganzita, depois, em nova viagem que o teu marido fizera ao outro lado do mundo, a Tâmara. Não entendias, então, ou não querias entender o que é ser-se pai de adolescentes. E tendo duas raparigas, uma das quais te traria profundas amarguras com uma gravidez contraída antes de terminar a escola e ainda em meia adolescência, eras pouco tolerante das necessidades de rapazes com o sangue a fervilhar. Sei que terás tido – que tiveste, como me confessaste – um quase-enfarte quando os viste, incluindo o meu, o instigador, a esquiar de cima do tecto da minha casa de dois andares para uma montanha de neve que todos eles, de balde em punho, tinham acumulado no quintal e para cima do qual, usando a inclinação do tecto da casa, orientavam os esquis ou as pranchas de esquiar. Sabendo tu perfeitamente que eles podiam partir as pernas ou o pescoço, vieste pedir-lhes que o não fizessem. Quando te fizeram ouvidos de pescador, tu ameaçaste-os com a polícia. O que os indispôs contra ti. Agora que lhes pedias novamente que deixassem de praticar os seus perigosos lances nas skateboards, pouca credibilidade tinhas com eles para te ouvirem ou aos teus pedidos acederem.
Mas tudo passou, Joanne. E agora que a tua filha perdeu a oportunidade, por enquanto, de se instruir, agarrada como está aos cueirinhos do filho que engendrou quando devia estar a estudar inglês e cerâmica; e agora que a tua outra filha se manifestou atrasada mental; e agora que a tua meia-idade te leva francamente a caminho da velhice; e agora que sabes que o meu filho passou por um cancro do cérebro e pelos tratamentos que lhe salvaram a vida, mas o deixaram prostrado com uma depressão de o confinar à cama dias a fio, semanas a fio, de não pensar em outra coisa que em morrer mas, entretanto, sem a coragem e a força de se matar…. agora, Joanne, tu tens, como me disseste o outro dia que tinhas, saudades das pranchas e seus ruídos, saudades do esquiar de cima da minha casa na ânsia de, de um momento para o outro, alguém te vir pedir para ligares para a polícia que um deles tinha partido o pescoço… tudo isso está para trás de nós, Joanne, e agora temos a realidade do momento presente em que os nossos filhos enfrentam as suas tragédias e nós vivemos a tragédia de saber que as tragédias de outrora, tão mais fáceis de sofrer, não voltam… e que outras tragédias, embora não saibamos quais, nos esperam e a eles pela vida fora atrás de qualquer esquina…
Para que foi, Joanne, todos os anos que não nos falámos? Para que foram os olhares evitados e mudos? Para quê as horas perdidas a vigiar as tuas pereiras, sabendo que eles, os rapazes, poderiam, tão-só para te arreliar, apanhado peras pedradas para se jogarem uns aos outros como quem joga bolas de neve? Tanto perdemos, Joanne, tentando protegê-los e proteger-nos deles, quando o destino estava tramando no escuro contra o futuro da tua filha; quando o mesmo futuro estava urdindo, no escuro, o tumor que viria pôr termo à felicidade do meu filho, que hoje não é capaz de reconhecê-la se ela lhe viesse bater à porta, e a mim me mata cada segundo que eu tenho de vida acordada… e me faz escrever disparates nesta máquina para não enlouquecer… já são cinco da tarde e ele ainda não se levantou para tomar o pequeno almoço e ontem levantou-se à noitinha e anteontem a mesma coisa e há um mês que estamos nisto e não estuda e não quer estudar e só quer morrer mas diz que não se mata até os pais morrerem mas quando os pais morrerem que então se mata é questão de tempo e não quer estudar nada porque sabe que a vida é isto para ele e não tem mais amigos e fica à espera que os amigos venham dos confins da sorte e lhe liguem para ele sair umas horas com eles e fumar um cigarrinho de maconha que lhe permita desfrutar de estar vivo uns minutos que depois o prostam em buracos ainda mais fundos e eu aqui a ver se não penso nisto de tanto pensar nisto que tento em vão transferir para este ecrã por entre as lágrimas que já nem tenho mais para chorar porque já as chorei todas nestes últimos quatro anos que nada me têm aproveitado pois não é de chorar que a vida se conserta mas sim de morrer que também não resolve nada para os que ficam…
E não entendes nada disto, Joanne, que te escrevo e que poderia partilhar contigo se valesse a pena mas estás tão seca como eu para ao menos ter a vontade de escrever coisas que eu já nem sinto pois sãos os meus dedos a escrever por mim e eu aqui a ver-me escrever coisas que são outras tantas maneiras de chorar as que não poderia escrever ainda que quisesse…
Salva-me, Joanne, o saber que daqui a mais uns anos já nada sentirei o que não me impede de sofrer agora o que então não poderei sentir pois a vida é esta porra que acalentamos e cercamos de cuidados e nos traz todo o sofrimento e dá-no-lo num vaso a beber antes que venha o fim para se certificar que nós emborcamos tudo antes que nos cubra o bendito olvido e as pás de terra que nos deitarão em cima.
E nem podemos, Joanne, roubar à vida nada pois as convenções mandam que a soframos burguesmente respeitadores do nosso estatuto de casados de chefes de família de professores e de criadores dos líderes de amanhã (esta é boa, não, Joanne?) nós os criadores dos líderes de amanhã quando não temos as forças para deixarmos de matraquear silenciando-os os tormentos que nos afogam… mas amanhã, segunda-feira, temos que ir para as nossas respectivas faculdades e como se nada houvesse a oprimir-nos ensinar aos nossos alunos que há coisas eternas como a literatura e a biologia que nos podem salvar das amarguras da vida que já não suportamos e proporcionar-nos o remédio para as doenças que nos torturam e que já não servirão para os nossos filhos que a elas sucubiram e nos fizeram delas também sucumbir numa morte-vida que já nos matou deixando-nos vivos…
Francisco Cota Fagundes, University of Massachusetts Amherst