Poema em plena faina para Vitorino Nemésio
A meio da obra, digo-te: Olá mestre!
Preso à plaina, aguardo o teu cuidado,
o soar das albarcas no terreiro
ou o roçar do burel na minha lida:
mas nada.
Que vazio é este entre as colunas?
Quem te chamou mais alto?
O silêncio é grande, pedra a pedra
e colhe Portugal exausto, quedo, estreito
em toda a via.
Todavia direi que não sossego
ao saber que o teu compasso
não mede como dantes, passo a passo,
o correr das penas e vislumbres…
A meio da obra, digo-te:
Quem como tu, nada no verbo?
Quem como tu ciente,
dos cardumes do veneno?
Homem da gávea.
Rosa dos ventos, águia na demanda.
Amante quântico de tudo.
Que florentino ser no estar reinol
mesmo!
O poeta é flor viril na tarde do enlevo,
é o cavaleiro sabedor de ajudas,
contendo, abrindo, imperceptível nos ares altos
– a tua escola.
Mestre sagaz, pedreiro do templo,
frecheiro de amores de capa e espádua,
amigo grande,
ali, debruçado nos livros com luz pouca
quase flamenga,
aqui envolto na manta mágica
de levar aos engenhos,
à iemanjá em seus colares e espuma,
porque assim somos continentes, outros.
Amador atento ao ínfimo das mãos do povo:
púcaros, bengalas e cabaças,
palavras e estrelas do emprego sagrado do tempo
Indómito coração brincador,
atleta da arquivolta, sempre
suspenso do dedilhar manso nas vilas de arame
tangendo ilhas, densas amizades, setenta e sete cidades
nos teus olhos
a olhar; mas,
mas o teu rosto velado hoje se anuncia
«ecce homo»,
enquanto na cidade os «vickings» investem agora venerados
e obrigados.
Obrigado digo eu, por existires,
mesmo amortalhado na brandura do dia.
A meio da obra digo: Olá mestre!
… e a plaina corre ligeira.
João Bettencourt, in Jornal Novo, Lisboa, 2 de março de 1987.
Bettencourt, João Goulart de, (1945), advogado, funcionário administrativo do Estado, natural da vila das Velas, ilha de S. Jorge, reside em Coimbra.