João Pedro Porto:
utopias e ruínas
Num livro que conheceu alguma e merecida notoriedade nos anos noventa, Daniel Pennac apresentava o decálogo dos «direitos inalienáveis do leitor» (Como um romance, Edições Asa, 1993). Tratava-se de uma obra muito pessoal, que, entre o registo irónico, a reflexão e as pequenas narrativas exemplares, procedia a uma dessacralização do ato de leitura, dos seus rituais, enquadramentos, e fazia dele uma prática natural, inesperada por vezes e sujeita às contingências pessoais, mas assegurada para além de tudo por uma atitude descomplexada e afetiva do leitor para com a obra. Em suma, a proposta de Pennac divergia das leituras instrumentadas e técnicas, embora possa e deva ser vista, essa proposta, mais como um processo complementar do que propriamente antagónico.
Entre «o direito de não ler», que é o primeiro de todos, e «o direito de não falar do que se leu», o último deles (ambos suspensos, aqui e agora, por força das circunstâncias), detenho-me no sexto, pois este é efetivamente a razão da convocação do livro de Pennac: «o direito de amar os “heróis” dos romances (ou o direito ao «bovarismo» – doença textualmente transmissível)». De modo aproximativo, o «bovarismo» será o primeiro estado de leitor, aquele em que a história parece provocar a satisfação plena das sensações, o momento da adesão emotiva e incondicional aos «seres de papel» que atravessam histórias feitas à medida do seu destino.
Não interessam por ora as considerações de Pennac sobre a importância e a necessidade de o leitor adulto regressar, por vezes, ao espanto dessa descoberta inicial (até mesmo para confrontar-se com a tolice de algumas leituras). A questão é que, para ser mais abrangente e completo, o decálogo de Pennac deveria contemplar também o direito de apaixonar-se por uma frase, por um fragmento textual que irrompe no interior de um livro como uma iluminação momentânea, suficientemente impressiva para fixar-se em definitivo na memória de leitor. Foi por um processo destes que me apaixonei pelo anterior romance de João Pedro Porto, quando o folheava despreocupadamente e me deparei com um capítulo que começava da seguinte forma: «O verão de 84 foi quente. Lembro-me do calor como quem se lembra de um ente querido que já se foi.» (O Rochedo que chorou, p.63).
Pode ter sido o contraponto rítmico entre a frase curta inicial, incisiva, e os sucessivos desdobramentos da segunda, mas aquilo que me cativou definitivamente nessa abertura narrativa foi a transposição brusca de um enunciado objetivo para a dimensão fortemente subjetiva de outro, o modo como se partia de uma afirmação banal para uma outra em que a linguagem tudo transfigura e confere ao «calor» uma natureza física e, simultaneamente, uma notável espessura psicológica e emotiva, uma e outra insuscetíveis de se deixarem apreender por qualquer imagem fotográfica. Para um romance que constituía uma estreia, havia por ali muita sabedoria, muita experiência e contacto com a literatura, coisas que a minha leitura integral da obra acabaria por confirmar por outros modos e caminhos. Mas hoje, quando penso em O Rochedo que Chorou, é sempre nesse fragmento que começo por pensar (fetichismo, dirá o psicólogo clínico).
Com este segundo romance, O 2egundo m1nuto (Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2012), João Pedro Porto prossegue a indagação sobre a condição humana e o sentido da vida, sobre a sociedade e o Homem na sua relação com o outro, com o seu tempo e espaço. Se, de algum modo, isto já acontecia no romance anterior, o que agora se verifica é um aprofundamento dessa indagação, não apenas pela demorada exploração das tensões internas das personagens e dos seus condicionamentos históricos e sociais, mas também pelo enquadramento espacial e temporal dos acontecimentos – mais próximos de nós no tempo e expandidos para espaços mais abrangentes, não imediatamente referenciáveis, mas aludidamente identificáveis como a Europa ao centro ou a leste, e por oposição ao bloco geográfico peninsular e a uma vaga ilha, do outro lado do canal.
A nomenclatura dos espaços é, já por si, uma forma de abstrair da preocupação referencial e do recorte realista, inscrevendo-os numa dimensão outra, alegórica, sobre os quais se desenrola uma história que possui também uma significação que está para lá da dimensão literal propriamente dita: a ilha chama-se Albina, a ilha branca, «não [tem] mapa nem pontos cardeais» (p.33), e comunica com a capital Alba-mater através do pequeno porto de Abraxas; sem habitantes originais, a ilha é ocupada por um punhado de habitantes, os Ostras, naturalmente vítimas de ostracismo, desconhecedores da alegoria de Platão e incapazes de distinguir o mundo das sombras do mundo real.
O início da narração, reportando-se ao primaverão de 2012, introduz-nos num Pr1meiro Acto, aquele em que paradoxalmente se realiza o último sonho de Nemésio Casuar, o protagonista, o que implica, em consequência, um relato retrospetivo de toda a história, de 1962 até ao intono 1991, um momento já de exílio na ilha, após a falência da utopia nemesiana de uma Alba-mater peninsular.
Estamos, pois, perante uma narrativa destes tempos, já não os tempos modernos de Chaplin, que eram os de uma história ainda assim teleológica e caminhando para um objetivo determinado. Neste período que o romance de João Pedro Porto configura, as grandes narrativas foram-se desagregando em simultâneo com os grandes movimentos ou causas e as utopias que os sustentavam; as histórias débeis, atomizadas, traduzem por uma vez o estilhaçamento e debilidade da (des)razão pós-moderna, precária e despojada dos grandes princípios organizadores da vida e do mundo. Esse foi também o tempo da afirmação definitiva da cultura de massas, do efémero e do espetáculo social ou do social como espetáculo, o império da mediatização irracional, isto é, sem qualquer razão objetiva (como o recente filme de Woody Allen, Para Roma com amor, nos mostrava de forma caricatural).
É certo que, no romance, Nemésio escreve, em 1962, uma carta à (já extinta) Sociedade das Nações, propondo a criação da 1.ª Republica Alumni para a Meritocracia dos Povos Peninsulares e comprometendo-se a enviar os documentos necessários à sua implementação. As causas da decadência dos povos peninsulares já tinham sido inventariadas por Antero um século antes, como se sabe; o projeto de Nemésio consiste em banir a vulgaridade (a inépcia e a inércia), substituindo-a por uma nova elite, aquela que se mede pelo mérito nascido «do querer e do crer». Projeto utópico, por isso condenado ao fracasso, como todos os outros, aliás: a oriente, Nemésio e Severina são rejeitados e recambiados à Península, a utopia de leste (ou a leste) esboroa-se, como areia entre os dedos, ao longo de três páginas brilhantes em que se fazem ouvir os acordes, os sinos e os canhões da Abertura 1812, de Tchaikovsky (p. 183-185). No fim de todas as utopias, aquilo a que se assiste é à rebelião das…bestas, ou seja, Ortega y Gasset em registo orwelliano:
«Chorava-se a humanidade. Choravam-se as quimeras e as utopias. O mundo das bestas e dos Homens livrava-se, por alergénico uredo, dos Homens. Ficavam as bestas. Era delas o mundo. Teria talvez sempre sido.» (p. 185)
E nem mesmo a Península é solução: Alba seria Elba, afirma Nemésio num jogo fonético a aludir, via Tchaikovsky, ao lugar do exílio napoleónico; mas Alba–Mater é um falhanço e a Jangada de Pedra, que em Saramago permitia uma viagem de libertação, está reduzida em João Pedro Porto ao título de uma rádio da resistência, a Rádio Jangada de Pedra 101 – mais retórica, portanto. O destino último será, pois, o regresso à ilha: «Albina, a ilha da Besta branca, ins
inuava-se ao longe, qual seio que só agora se via como útil. (…) Aquela ilha falava-lhe [a Nemésio] da infância, como se lhe dissesse que as recordações seriam importantes daqui em diante.» (pp.198 e 203).
Há uma memória insular que subsiste para lá de tudo, da história e dos seus desmoronamentos. A Alba-mater (a Alma-mater), afinal, estará na ilha, mais uma vez desempenhando na ficção o papel de «rochedo da salvação» a que, no plano histórico do liberalismo, se referia Alexandre Herculano. E o derradeiro desafio, o último sonho, de Nemésio, nesses dois últimos minutos a que cada homem tem direito, será subir a Montanha, a Besta Branca, vencê-la e descobrir o mundo que do cimo dela poderia alcançar.
O 2egundo m1nuto: um romance sobre as utopias, é certo. E as utopias são seres de papel, tal como na definição já clássica de personagem, existem «para ser sonhadas» (p. 159), a sua transposição para o plano material traduz-se, por norma, num rasto de destruição e ruínas empilhadas: as duas grandes utopias europeias do século XX, a da eugenia e a do igualitarismo, deixaram atrás de si milhões de mortos empilhados nos campos de concentração do alemão e nos gulagues do soviético.
Mas é também um romance que, sobre tudo isso, afirma a salvação pela arte e pelos afectos: «há que saber sugar a beleza do tutano do mundo, mesmo tendo em conta o seu peso» (p.173). E esta seria uma outra linha de leitura a perseguir: O 2egundo m1nuto é um romance que celebra o poder das artes, da literatura, em primeiro lugar, mas também da música, do cinema, da pintura. E seria um trabalho interessante inventariar a biblioteca (mas também a cinemateca, a pinacoteca, a discoteca) desta obra, os autores que a habitam, de forma explícita ou aludida, lidos, transcontextualizados, treslidos, em suma, pois nem toda a citação é reverencial e acomodatícia: há por vezes transcrições que são subversões e, no limite, construções apócrifas. Em qualquer caso, porém, a convocação desses autores traduz, de algum modo, o universo familiar de um escritor, os seus fantasmas íntimos, as suas relações literárias e as suas afinidades (e, por hipótese mais remota, também os inimigos de condomínio) e, por outro lado, constitui um processo antropofágico de incorporação do outro.
Não é, por isso, de admirar que um dos convocados seja precisamente Boris Vian, dada a marcada dimensão surrealizante da escrita de João Pedro Porto (o que, aliás, justifica a alusão ao Café Gelo e, por associação, ao Bar Jade, motivo para homenagem à geração de 40 em Ponta Delgada). Mas há também Camões e Melville, Pessoa e Haggard (via Eça de Queirós), João Cabral de Melo Neto e Gamoneda, Camus e Sartre, Nietzsche e Huxley, Rimbaud e Edgar A. Poe, Italo Calvino, Orwell, Hemingway; no cinema, Fritz Lang e Bergman; na pintura Pollock e Goya – e fica apenas uma lista abreviada, sem preocupações de exaustão, a atestar a natureza da literatura como memória cultural e literária (parece pleonástico, mas não é), e também como um verdadeiro jogo em que cada autor pode, a seu bel-prazer, manipular, desbaratar ou fazer render os bens que lhe couberam em herança. A isto, pode chamar-se boa literatura; às vezes, apetece pensar que todo o resto é …mercado e finanças. E, destas, nem o Pessoa queria saber.
Ponta Delgada, 29 de novembro de 2012
Urbano Bettencourt