Explica neste Utopia em Dói Menor que quando está no domínio do ensaio costuma ser sério, claro e conciso.
Não se pode estar a fazer humor por tudo e por nada; depois, eu sou muito intenso quando estou a trabalhar, a escrever ou conversar sobre ideias, não vejo mais nada se não argumentos. Muitas vezes até esqueço com quem é que estou a falar, é como se estivesse a falar sozinho, a pensar de forma clara e a dizer tudo com a preocupação de ser factual e rigoroso no argumento.
O interessante deste livro é que também se percebem os principais traços da sua biografia.
Os cursos que fui desenvolvendo tinham sempre a ver com questões que me interessavam e, numa universidade muito aberta como é a de Brown, permite-se que os professores acabem por investigar as áreas que lhes interessam; desde que vão alunos às aulas, está tudo bem. Portanto, no fundo, tudo o que escrevo é autobiográfico – são coisas que me aconteceram ou preocupações que tive.
Depois de muitos anos a publicar essencialmente livros de crónicas, parece notar-se agora a preocupação de publicar o seu pensamento filosófico, o seu lado mais sério.
Tenho muitos ensaios publicados em revistas e em livros colectivos, dois livros sobre temática açoriana e um livro sobre Fernando Pessoa que publiquei em 1987 e cuja segunda edição vai sair agora em Portugal na Primavera. Tenho seguramente 300 e tal artigos publicados, alguns com 40/50 páginas. Mas para os compilar é preciso tempo e eu faço uma média de 40 conferências por ano, estou sempre a responder a solicitações. É mais fácil com as crónicas, basta juntá-las; os ensaios precisam de uma unidade.
O curioso é isto ser feito com base numa longa troca de correspondência com alguém que não conhecia a sua obra.
A mim conhecem-me, sobretudo, pelos estudos de cultura portuguesa. O João Brás foi assim um bocado de sorte que me aconteceu, começou a interessar-se e mandou pedir a lista do meu curriculum e depois começou a pedir este e aquele ensaio. Sabe que o João Brás já tem um livro de 300 páginas escrito sobre a minha obra?
Já tem editora?
Ainda não, mas também é uma coisa que vai interessar a muito pouca gente.
Diz que gostava que este livro fosse uma espécie de introdução à sua obra e às coisas e ideias que o foram preocupando durante a sua vida.
Tive muitas reservas em relação a este livro, com receio de estar a simplificar tudo. Poderá levar as pessoas a interessar-se e chamar a atenção para os livros que vão começar a ser publicados ao ritmo de, pelo menos, um por ano, mas há sempre o perigo de levar as pessoas a pensar que está tudo dito, de ficar pela rama.
Também refere que gostava de escrever dois ou três livros de memórias.
A minha biografia não tem nada de especial, não sinto nenhuma necessidade de contar a minha vida. Mas ouvi tanta história, vi tanto caso interessante, que é uma pena não os contar. Agora estou a fazer um pouco isso, um diário onde conto as histórias com piada que vou ouvindo ou me acontecem e que envio a um grupo de amigos muito restrito – chamo-lhe Notas Bárbaras, parafraseando as Prosas Bárbaras do Eça.
Este livro que começa por acaso acaba por estabelecer uma relação mestre-discípulo entre si e o João Brás.
É discípulo na medida em que quis aprender e quis ler, mas não o sinto como discípulo, sinto-o como um leitor ideal que entra sem problemas num universo e se põe a conversar. Claro que as perguntas não são para ele, são para dar a conhecer o pequeno universo que quer partilhar com o público. Mas sei que alterei um pouco a visão dele nalgumas coisas, porque ele cultiva esse lado muito europeu do pessimismo – escreveu muito sobre o Emil Cioran, cita muito o grande filósofo inglês John Gray – e eu, influenciado pelo espírito americano, sou mais de “ok, isto é mau mas vou fazer tudo para o deixar um pouco melhor”.
Foi estudar para os EUA depois de se licenciar na Universidade Católica e por lá ficou, mas nunca deixou de manter uma relação profunda com Portugal.
Costumo dizer que nunca emigrei, só alarguei fronteiras, sem nunca ter deixado de ser açoriano. Há uma frase do George Santayana, que não sei se cito neste livro mas que já citei num ensaio sobre identidade: os homens devem ser como as árvores, as raízes cada vez mais profundas e a copa a subir e a alargar para abraçar o universo todo.
E sempre manteve uma relação de amor/ódio com o país.
Sim, mas eu não queria que fosse assim. Portugal tem imensas coisas de que eu gosto, obviamente, mas falta essa questão até democrática do respeito pelos outros. No debate público em Portugal, as pessoas defendem a sua imagem e não defendem ideias. No início, tentei fazer esse tipo de crítica e fui recebido com silêncio total. Eu percebo isso – o meio é muito pequeno, as pessoas sentem-se lesadas, sentem o seu pedestal ameaçado. Portugal faz-se à mesa do café, numa cultura um bocadinho hipócrita, onde tudo passa logo para o lado emotivo e rapidamente descamba em luta de egos.
Daí acusarem-no de ser frio nas suas análises, de os seus ensaios não terem emoção, de lhe faltar literatura.
É verdade. Num debate, numa conversa sobre ideias, não estou preocupado em fazer um texto bonito. É uma grande influência nórdica, porque os países do Norte são muitíssimo mais frios a discorrer sobre ideias. Em Portugal, prefere-se uma pessoa emotiva que não diga nada a alguém que friamente analise um assunto.
Eduardo Lourenço disse-lhe uma vez para se dedicar só aos ensaios e às conferências e se deixar de crónicas e anedotas.
Houve alguém que disse que eu só sabia contar anedotas, mas foi um académico que nunca leu nada do que eu escrevi. Isso não me preocupa. Não me preocupa se não publiquei os livros mais cedo, não vivo angustiado com o que os outros dizem, com o que disse o crítico tal. Há em mim um desprendimento muito grande em relação às coisas que faço, não estou aqui para salvar a terra.
Daí ser um crítico das grandes utopias que querem mudar o mundo.
Lembro-me do Theodor Roszak dizer, no Para uma Contracultura, nos anos 60: “Eu tenho planos claríssimos para mudar o mundo, não sei é como vou mudar a mentalidade do merceeiro da minha rua”. O grande erro do Marx foi não perceber a natureza humana, tão obcecado estava com um conjunto de ideias e ideais. O capitalismo é feito pelos homens e os seres humanos são muito mais complexos, muito mais mesquinhos; não é possível criar o paraíso na terra. E o que se pode fazer é criar regras de convivência, para que cada um tenha o seu espaço de liberdade.
Mas não precisamos da utopia, do sonho; não precisamos de pensar no impossível para fazer o possível?
Claro, ao contrário do John Gray, que diz que nem isso vale a pena, eu ainda sou dos que acham que vale a pena ter sonhos; agora são sonhos muito concretos e não sonhos irrealistas em que o indivíduo acaba por não fazer nada. A conversa é muito bonita, mas eu acho melhor que o sonho seja mais baixinho, mais à nossa medida – que seja uma utopia de pés no chão.
É por isso que acha que Shakespeare superou Marx?
Shakespeare entendeu como ninguém do mundo das artes a complexidade da natureza humana. Marx era demasiado ideólogo e estava convencido de que o mal do mundo era o capitalismo e de que quando este acabasse tudo ficaria bem, esquecendo-se de que os seres humanos, no dia-a-dia, têm todas aquelas camadas negras que o Shakespeare apontou e que nunca desaparecem.
Se a China e a Índia estão hoje a fazer o mesmo que se fez no século XIX, como diz neste livro, não terão os marxistas de hoje razões de sobra
para declararem guerra ao capitalismo?
Recorrer ao marxismo hoje é tão quixotesco como querer levar as pessoas de volta à igreja. O marxismo era uma fé e não vejo como ressuscitá-la. Quem de nós estará disposto a abdicar da sua liberdade de expressão? Não faltará certamente é quem esteja pronto para retirar esse direito a outros.
Como poderão manter-se vivos os ideais da modernidade que, para si, são “a última esperança”, quando a justiça e a igualdade para todos são condicionadas por forças que funcionam à margem da lei?
Nunca houve um mar de rosas em matéria de justiça e liberdade. Isso são ideias da modernidade em que todos fomos embalados. Aliás, em Portugal a nossa geração foi a primeira a beneficiar em pleno delas. Se há alguma coisa que seja preciso acordar são as pessoas, não o capital, porque esse não dorme nunca. Se há que urgir intervenção de alguém será a dos cidadãos. Organizando-se e intervindo.
Nunca se tinha falado e escrito tanto sobre revolução como nos últimos tempos.
As revoluções dão no que temos visto. Permitem uma explosão pelo tubo de escape, mas depois tudo assenta de novo e volta-se em grande parte à [situação] antiga.
É mais responsável resignarmo-nos com a imperfeição desta modernidade?
Não se trata de fazer um apelo à resignação, mas sim de não embarcar em utopias que só são servidas em sonhos. Explodir canhões e bombas contra quem? Os grandes responsáveis estão longe e bem protegidos. É frustrante, mas espernear e berrar simplesmente não resolve nada. E juntar balas ao protesto também não.
José Eduardo Franco, no posfácio, escreve que “urge ganhar consciência crítica dos limites e das potencialidades, para que se possa enfrentar os desafios que a crise de hoje – que é, na verdade, uma crise de sempre, uma crise mais funda – nos impõe”.
Eu gostava que se fizesse, mas não vejo aí muita gente empenhada nisso; vários que deviam estar a estudar a sério não estão porque estão ocupados a queixar-se. Vejo um excesso de pessimismo e de mãos caídas. Nós somos maníaco-depressivos. Há um leque de possibilidades, mas não é muito grande e há que ter noção realista delas e perceber onde é que se pode intervir e melhorar. Isso acaba sempre na responsabilidade individual que muita gente não tem.
A crise não nos terá deixado órfãos do mito da construção europeia como garante do futuro e da prosperidade?
Já escrevi sobre isso e volto a afirmá-lo: agarrem-se a ele porque o contrário é bastante pior. Este é o maior espaço de tempo sem guerra na Europa, queixem-se da Merkel, queixem-se de quem quiserem, mas enquanto conseguirem manter isto juntos não há miséria. Não fazem a menor ideia do que foi nascer a seguir à guerra. Esquecem-se que mesmo em 1980 se vivia incomparavelmente pior em Portugal e estávamos muitíssimo melhor do que a seguir à guerra. Rezem a todos os santos, aos que existem e aos que não existem, para a União Europeia continuar.
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