MILHAFRE
Meu velho donatário destas ilhas
Açor… Queimado… o nome que te importa!…
Da tua realeza há séculos morta,
Li, algures, estranhas maravilhas.
Eras tu único senhor e rei
Destes pedaços dum morto continente,
De ti falou a antiga e brava gente,
Que o Mar domava a seu capricho e lei.
O teu grito de guerra percutia
Nos picos altaneiros e desertos
E só de ouvi-lo o Vale estremecia
E o horror gelava os ninhos mais despertos.
Foste grande, temido e odiado,
E, hoje, na mata escutas taciturno,
Do mocho, apático, o requiem nocturno,
Pelo seu rei, vencido e destronado.
Pobre milhafre, agora em vão ensaias
Voos de águia a roçar o céu…
Já não estão desertas estas praias,
Nem o mar que julgaste apenas teu…
Quase um herói das velhas descobertas,
Inda hei-de ver-te à beira dum atalho,
Espetado num pau, de asas abertas,
Posto a apodrecer feito espantalho…
Tu que eras sanguinário como um cafre,
Pirata mor das terras do teu nome,
De nada valem, se te aperta a fome,
Teus prolongados gritos de milhafre…
E se apareces, vendo-te, escarninha,
A garotada, cá de baixo, grita:
– «Dá uma volta e eu dou-te uma galinha!»
E, que tu lhe obedeces, acredita.
E ai de ti sem eira ou simples beira,
Onde te acolhas, pra acabar teus dias,
Rei transformado em arlequim de feira,
Coberto de sarcasmos e ironias.
Comparo o teu destino ao dos tiranos,
Que um dia escravizaram multidões
E acabam sempre, no rolar dos anos,
Provando a lei das vis humilhações.
José Barbosa,
Coração nas mãos,
Ponta Delgada, Edição do autor, 1914.
José Leite Barbosa (1893-1972)
Imagem de http://www.birdguides.com/species/species.asp?sp=030029