Uma palavra sobre o José Nuno da Câmara Pereira, excelente artista e senhor de uma finura humana cândida e encantadora.
Membro de uma ínclita geração mariense, toda de uma só família, um conjunto de notáveis irmãos, rebentos de uma cepa já de per si notável: o pai, Armando Monteiro, autor de Pedras de Santa Maria (1969) que comprei no saudoso Bureau de Turismo, ali ao Largo da Matriz, e que li deliciado; e o avô, Manuel Monteiro Velho Arruda, responsável pela organização da preciosa Colecção de Documentos Relativos ao Descobrimento e Povoamento dos Açores (1932), a que ainda hoje recorro com frequência. O volume é precedido de um ensaio crítico em jeito de prefácio.
Conheci mal Fernando Monteiro, o irmão mais novo creio, de todos o único voltado para a política; mas sabia-o fogoso e dinâmico. Contactei mais de perto com a irmã, a Madalena Férin, poeta de gabarito sobre quem melhor do que ninguém o Eduíno de Jesus escreveu e apresentou num eloquente prefácio ao seu livro – Poemas (1957). Mas havia mais irmãos na prole: o padre Jacinto Monteiro, autor de um livrinho de gostosas estórias marienses, Memórias da minha ilha (1982). E compunha o naipe ainda um outro, de quem há muito não ouço falar, o autor do livro de poesia Tempo Redondo (1981) – que o consagrado padre Manuel Antunes saudou em prefácio anunciando: Nasceu mais um poeta. Nasceu um poeta maior. Nasceu numa ilha, a ilha de Santa Maria, nos Açores. Uma ilha que se foi ampliando às dimensões do Universo. O último que vim a conhecer foi o José Nuno, o artista plástico senhor de um sorriso a desprender-se de um olhar voltado para o longe, mas que criava arte com o chão da terra que o viu nascer – o barro, a pedra pomes, o basalto das suas ilhas.
Um dia, contactou-me através de um mariense de gema nascido em S. Miguel, que da sua ilha natal para Santa Maria quase levou consigo apenas o nome: Miguel (Côrte-Real de sobrenome) tão nativo da sua ilha adoptiva se tornou. O José Nuno tinha obtido uma bolsa da Gulbenkian (um trabalho dele figurara na capa de um número da sumptuosa revista Colóquio-Artes) para vir estagiar um ano no MIT a trabalhar com um especialista em artes visuais cujo nome já não me recordo. Despassarado como muitos artistas são, dera o seu aval à proposta, esquecendo-se no entanto de fornecer pormenores logísticos. Em desespero, o José Nuno pediu-me socorro. E foi então que intervim acabando por iniciá-lo nas ruas de Cambridge e levando-o ao estúdio do MIT, onde passaria um ano inteiramente devotado a absorver experiências e ideias.
Esse tempo permitiu-nos reencontros que me deram acesso a um ser humano com alma de poeta e mãos de criador, dono de um sorriso ingenuamente desarmante que o cobria de uma aura impermeável a qualquer resquício de maldade.
De regresso aos Açores o José Nuno levou sonhos, deslumbrado que estava com a promessa de uma casa para artistas no Sanguinho, ou noutro local paradisíaco, que lhe haviam pedido concebesse. Tendo-se o projecto logrado por razões alheias às suas mãos, acabou, todavia, os seus anos a trabalhar feito eremita na solitude de um antigo casarão militar ali junto ao campo de jogos de Angra, no enfiamento do Relvão e do Castelo.
A saúde foi-lhe faltando e há já anos que vivia fora deste mundo, como que embarcado no universo em que parecia preferir habitar.
Há gente assim, desprendida do barro e basalto em que vivemos. E nós muitas vezes nem reparamos nessas criaturas que, como o José Nuno, transformam o barro e as pedras em relvões verdejantes e em castelos suspensos no futuro.
Um abraço, meu bom José Nuno.
Onésimo