LAURINDA ANDRADE (*)
(navegante solitária no oceano da diáspora)
1 – do narcisimo literário: criação de uma ou várias subjectividades
Vimos ao encontro de Laurinda Andrade para benignamente contrariar o divertido alarido que por vezes resulta da pressa de lançar em órbita sensacional alguns dos aspirantes culturais da diaspora. O nosso convite iria no sentido de tentar compreender as prioridades sociais e as motivações psicológicas de uma das mais lúcidas educadoras do nosso património histórico comunitário.
No tecido criativo da escritora Laurinda Andrade, não há charnecas lamuriantes para carpir a “puericultura” sentimental. Explico-me: a sua escrita não se compadece com o “choradinho-imigrante” – expediente amiúde usado como sentinela pontual à sentimentalidade literária do academismo reumático. Como se diz na nossa terra, Laurinda foi uma “mulher d’armas”; uma Brianda Pereira açor-americana, confrontada com a “guerilha” da ausência, e forçada a soltar os toiros do bom-senso ao encontro dos forcados da ignorância com passaporte extraviado…
A sua biografia intitula-se The Open Door. Não sendo porventura pioneira na matéria (estou informado de que a mais antiga autobiografia dum imigrante é a do faialense Charles Peter), a escritora representa, todavia, o caso raro duma mulher imigrante qua faz “gala” do seu sucesso como educadora.
Falta ainda referir que The Open Door é um hino de thanksgiving à América do seu tempo. Laurinda escreve numa linguagem quase bíblica: convida-nos a conhecer a vertente feminina da emigração, como quem esboça a “herstory” da via-sacra da emancipação feminina…
Entrementes, não resisto à tentação de salientar um dos seus mais lúcidos mandamentos, a saber: “… a auto-estrada do sucesso está na educação”. Curiosamente, Laurinda Andrade sabia de cor a distância qualitativa entre “o indivíduo diplomado e a pessoa educada”. Como mulher emancipada, solteira, compreensivelmente recalcada na sua feminilidade ofendida, por que oriunda duma micro-sociedade pincelada de machismo (embora atenuado pela especificidade sociológica da sua ilha natal – a Terceira), Laurinda Andrade terá porventura crescido “pura como a pomba e astuta como a serpente”.
2 – prudência técnica na elaboração da sua autobiografia
Na narração dos capítulos iniciais, talvez para se defender dos eventuais lapsos de memória, a escritora cedo optou por usar a “terceira pessoa”, na mira de aliciar o leitor como cúmplice ou testemunha favorável aos anseios da sua criatividade imaginativa; finalmente, diria que a tonalidade discursiva da sua narrativa não nos parece indiferente à musicalidade gregoriana.
Vejamos: o retrato da ‘proto-feminista’ Laurinda Andrade parece avivar o claro-escuro duma santidade misteriosa, que alguns estudiosos terão já vislumbrado no psiquismo religioso de santa Teresa d’Ávila.
Não nos parece original dizer que o narcisimo intelectual é talvez uma das divertidas pseudo-debilidades da psique humana. Ora dito isto, faltaria ainda dizer que Laurinda Andrade amou a sua gente como moldura humana do seu sucesso; nunca enjeitou o estatuto superior de missionária escolhida pelos desígnios da Providência para o infindável combate contra o pecado da ignorância. De acordo com o que me foi dado aprender no convívio com o escritor e professor universitário, doutor Francisco Fagundes, a autobiografia de Laurinda Andrade enquadra-se sem disfarce no tipo “autoritário”, por sinal estruturada na seguinte trilogia:
a) narrativa triunfal;
b) história do resgate pelo sofrimento e pela renúncia;
c) acção de graças à América (a nova Jerusalém).
Nas autobiografias, os respectivos autores são geralmente pacientes duma enfermidade chamada mitomaniam (não me refiro às mentiras globais; refiro-me apenas aos “beliscões” pontuais nas ilhargas da verdade… ).
Vejamos como a escritora, no seu livro The Open Door, consegue esgrimir contra as tentações da voluptuosidade sensual: o episódio da vaca; o caso da dona Maria Pia; o pecado venial do salto do muro da praia…
Afinal, meus caros santos-pecadores: que é a verdade? E as “meias-verdades” são mentiras envergonhadas ou verdades incompletas…? Como imigrante e escritora, Laurinda Andrade atingiu um grau elevado de autonomia pessoal: uma freira-laica, por vezes afoita, que conseguiu “saltar o muro” da sua condição feminina, sem todavia beliscar os alicerces do seu conservadorismo professoral, ou seja, logrou sacudir o pó da história do seu tempo, sem descer ao inferno ideológico da contestação organizada.
Laurinda Andrade sabia que a Constituição dos E.U.A. exalta a procura individual da felicidade, e não necessariamente a sua posse. O pulsar do seu catolicismo conventual avisava-lhe de que a felicidade individual trazia consigo o pecaminoso perfume da soberba. Assim, entre o risco de promover o seu semelhante pela justiça, e/ou dar-lhe uma esmola, receio que a nossa escritora estaria mais inclinada a optar pela última. Não admira tivesse feito da sua vida uma “esmola” à (sua) comunidade imigrante.
The Open Door é afinal um esbracejar étnico de louvor ao paraíso chamado América, já que a autora não tinha vocação para ‘chicotear’ a barriga ideológica dos profetas da “social order” do seu tempo. Ademais, ela acreditava que o sentido catedrático do exemplo vem do alto: no seu tempo, as comunidades imigrantes eram facilmente convertidas à doutrina feudal dos “bossas-verdasca”, diligentes serventuários da ditadura da necessidade.
Resumindo: Laurinda Andrade sabia disso, mas desabafava em solilóquio, como navegante solitária no ‘mar-morto’ da diaspora…
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(*) Laurinda Andrade chegou a Massachusetts (EUA), em Maio de 1917.
Completou estudos em 1931, no Pembroke College, em Rhode Island
(dado que, só a partir de 1971, a Brown University autorizou a presença
feminina nas suas fileiras universitárias).
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Rancho Mirage, California
Maio / 2011
Legenda Imagens:
1. Cartão Postal de Angra,início séc.XX – Arquivo Histórico
2. Outono Providence, de OTA, 2010