LEGIÃO
Mário T Cabral,
Quem, na Bíblia, fala mais do demónio? Nosso Senhor Jesus Cristo, sem tirar nem pôr! Expulsa demónios, é provocado por eles, ensina-nos a combatê-los, deixa-nos o dom de expulsá-los; e o Pai-nosso, a única oração que nos ensinou, tem uma referência explícita à tentação e ao mal.
Acrescenta, ainda, a notícia do Juízo Final, que a Igreja consubstancializa no Credo, de maneira muito pormenorizada na versão que se reza no Batismo. Não parece brincar em serviço neste assunto – aliás, chamar-Se Salvador significa que incarnou com o propósito bem definido de nos libertar dos malefícios da Queda, dos quais, sozinhos, seríamos incapazes de escapar, nomeadamente da morte.
O Evangelho de S. Marcos é paradigmático neste campo. S. Marcos foi companheiro de S. Paulo, que também não deixa dúvidas, tal como a Ortodoxia, haja em vista o Catecismo.
Porém, dentro da própria Igreja, há uma corrente moderna que tenta branquear estas alusões, interpretando-as como simbólicas e não literais. Esta leitura não é legitimada por passagens como aquela em que o Salvador confessa que alguns demónios são difíceis de expulsar por nós, por exigirem muita oração. Não pode ser mais pragmático.
A religião católica deve exigir para si o direito de ser entendida, precisamente, como religião, e não como um qualquer discurso alegórico para-racional, como depois do iluminismo alguns filósofos e também teólogos sugerem que seja. Se assim fosse, tratar-se-ia de um discurso meramente humano, sem fundamento na Transcendência.
Ora, uma religião é um relato mais do que humano, que envolve mais do que este mundo fenomenológico. No caso da Católica, sabemos que houve uma luta entre as forças do mal e a vontade divina, na qual fomos apanhados, por tabela. Não sabermos explicar mais do que isto não revela nenhuma incoerência lógica.
O equívoco da leitura moderna nasce da assunção — quiçá inconsciente — de que as ciências positivas têm a chave da explicação de tudo, neste caso específico a Psicologia, que toma o demónio por uma personificação de patologias como sejam a esquizofrenia, a paranoia e outras doenças mentais.
Mas porque há de a interpretação psicológica ser mais válida do que o discurso ortodoxo da Tradição? O conhecimento humano é falível e requer um fundamento robusto, condição que o positivismo deixou de ter e muito mais a Psicologia. Do ponto de vista estritamente analítico, a nossa religião não fica a dever nada a seja qual for o ramo do conhecimento humano.
Os exorcistas, que são herdeiros do dom atribuído por Nosso Senhor, distinguem as duas realidades: por um lado, os endemoniados; por outro, os problemas do foro psíquico. A navalha de Ockham não se aplica aqui.
Em termos estritamente analíticos, não convém que a religião católica adira a esta presunção moderna. Se os demónios são meras alucinações humanas: então os anjos também o são; então Maria não é Virgem; então a Eucaristia não é uma efetiva Transubstanciação; então a Ressurreição não é aceitável e Jesus Cristo não passa de um esquizofrénico, por Se dizer Filho de Deus… onde é que este processo de racionalização para? Não admira que o demónio tenha tentado Adão e Eva do modo como o fez.
Em termos estritamente analíticos, mesmo sem fazer apelo à crença, o demónio é um elemento indispensável no quadro de referências cristão, leia-se Plantinga a propósito. Na verdade, o problema do mal é, mesmo assim, um embaraço; porém, considerada a existência do demónio, o mal não recai sobre Deus, que é o Soberano Bem.
O mal é um embaraço porque não é lógico, não é racional, não faz sentido – é trevas, em contraste com a luz divina. Já o livro da Sabedoria declara que Deus não criou o mal nem a morte. Não há, pois, dois princípios, mas apenas um e uma desobediência a este princípio. E, graças a Deus, a cura, efetivada na Incarnação.
Não há só um demónio, mas imensos, uma legião, muitas legiões. São criaturas, como nós, não são deuses, não devem ser temidos como superiores, pois se Deus nos veio salvar é porque nos ama mais do que a eles; mas é preciso estar permanentemente de guarda contra as suas tentações, como aconselha S. Pedro. Esta é a luta pela salvação da alma.
Torna-se evidente que o inferno existe e não é apenas mais uma metáfora da tal interpretação alegórica. De resto, recusar o inferno e o demónio e o mal é retirar a liberdade às criaturas às quais Deus decidiu dar tal graça, por querer ser amado, e não seguido como que por uma lei natural, à maneira do motor imóvel.
É terrível assistir à escolha do mal, das trevas e do alheamento de Deus; mas como é que se pode obrigar alguém a amar sem entrar em contradição e sem desrespeitar esta pessoa?
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu livro de ficção, O Acidente, ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.